Miguel-Manso: Poemas que continuam a assaltar-me

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Ao ler, ao ouvido ouço: há tantas coisas que não sabes. Calo-me e continuo. Por vezes falo alto, a Poesia quer-se audível, dita, com verão e fins-de-tarde, como nos lembramos todos de haver. Apesar de vermos “a porta franqueada, ninguém lá dentro”, está lá muita gente, alguma até conhecida, para desconcerto do poeta e de todos nós.
Muito mar, decerto “o mar robusto dos pescadores”, decerto a juventude “roubarei de novo o carro aos pais/para ouvir outra vez o estrépito ameno/do teu gozo”. E porque não agora, mais velho?
No meio desses mares, o título do romance que nunca acabarei “como desviar o eixo da terra”, mas é bom saber que “diante do azar há/quase sempre um lugar de amparo”. Mesmo quando não vem “a onda onde/entrar à mergulhão em voo picado”, ou quando “o melhor rabo das férias veste/em definitivo o calção/vai embora”.
Poemas que já tinha lido mas que continuam a assaltar-me “escrevo no caderno dos afazeres: trazer aqui/um inimigo/para ser pequeno comigo para fumarmos/os dois um cigarro e sobretudo//emudecermos.” E continuar “na morte da avó”, onde está tudo o que já sentimos. E tudo o ainda não sentido: “que vida trará afinal a morte?/onde vai dar este carreiro?” E ainda a vida como estado suspenso “quem nos diz devagar/como habitar este corpo/suspenso entre limites”, talvez com “crianças ensopadas/de clarões”, porque “cada criança vertida sobre o sono frequenta/em calado tumulto uma aula de magia”.
Poemas inteiros em que se vive e revive, verdades incontestáveis “um cubo de gelo no deserto. Esse o diamante.” Um toque de Neruda na “solidão da casa guardada pelo mar”. Coisas simples ou não tanto, e que tanto vivemos: “ficava sempre inclinado sobre o jantar”. E aquela que é “mais cabra que nós mais montês: a vida/essa camurça difícil de curtir”. E para acabar em grande: “porque é no próprio saltar que se pousa/porque é no próprio pouso que se cai” e o mais que não consigo meter aqui dentro.
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Miguel-Manso
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