Memória a toque de caixa
A falta de memória nas Redacções tornou-se, nos últimos anos, um dos maiores problemas do jornalismo (português, mas não só), em resultado das sucessivas limpezas que os conselhos de administração ordenam, em nome de reduções de custos, nomeadamente salariais. Isto no que se refere aos motivos declarados, porque outros, de natureza funcional, de gestão, de capacidade reivindicativa dos profissionais, estão obviamente por detrás de decisões geralmente abstrusas.
O reflexo da falta de memória patenteia-se no modo como as Redacções se organizam, como estruturam agendas, como deixam passar factos relevantes do presente só valoráveis e inteligíveis à luz do passado. Mas também se sente no modo como as Redacções não se estruturam, e relevam o irrelevante, esquecem a leitura que a história propicia e preferem os palpites dos oráculos da actualidade, inchados na condição de fazedores de opinião.
À medida que os pilares da memória da imprensa, rádio e televisão vão definhando longe do meio, ostracizados, desprezados, e morrem, perde-se todo um manancial do modus faciendi da profissão, das condições políticas, económicas e sociais que determinaram a sua evolução – ou, pelo contrário, atrofia intelectual. Mas, também, perde-se todo um capital histórico quando se arruma os arquivos de jornais entretanto condenados a camiões de despejo no lixo. Ou se manda tudo a leilão, aleatoriamente, por vezes de forma parcelar.
O desinteresse é o funeral de documentos por vezes insubstituíveis. Insiste-se no que já aqui escrevemos anteriormente: mesmo as academias deixam passar ao largo tão vastos acervos, fecham os olhos às suas próprias necessidades de fazerem, promoverem investigação, de darem saída a quantos dificilmente serão encaminhados pelas instâncias normais da procura e oferta de emprego.
Vem o preâmbulo a propósito de “Memória de uma Mulher de Letras”, no singular, como foi grafado, e que sintetiza o percurso longo, multipolar, de Manuela Azevedo, uma jornalista à beira de completar um século de vida, com percurso por diversos órgãos de comunicação social, antes e depois do advento do 25 de Abril. Mulher de letras, também, porque como se averba logo na capa, a sua actividade multiplicou-se, da escrita jornalística à poesia, dramaturgia, ficção e ensaio.
A obra resultou de uma entrevista realizada em 2005 com a autora, quando Luís Humberto Marcos, director Nacional de Imprensa, no Porto, se apercebeu de que se tratava de “memórias que se desfiam sem parar”, aqui concretizadas “sem recurso a recortes ou arquivos”, como escreve no prefácio. O resultado é que a “impetuosidade da memória não respeita a cronologia dos factos”, porque “as palavras são como as cerejas”.
Trata-se de uma escrita impulsiva sobre mais de 70 anos de actividade jornalística, que apesar de muita superficialidade, certamente em resultado da falta de aprofundamento noutras fontes que não apenas a memória, acaba por constituir um guião e oportunidade para uma investigação futura, de académicos ou não. É que Manuela Azevedo começou a trabalhar no jornal República, passou pelo Diário de Lisboa e fechou a carreira no Diário de Notícias.
O desfile de nomes importantes da cena jornalística portuguesa dos três quartos finais do século XX seria, pois, uma inevitabilidade. E a constatação das dificuldades na relação com o regime salazarista, das mentalidades (também no que se refere à feminização das redacções…), das características empresariais de cada um dos títulos são mostrados pela evolução profissional da autora.
Perde-se muito na tal ligeireza da memória a toque de caixa. E a edição do livro ressente-se dessa condição em que aparentemente ninguém interveio na finalização da escrita de uma “memória” por vezes entaramelada, com frases nem sempre bem construídas. E uma situação pouco cordata: “Havia desenhos que nenhuma de nós consegui decifrar. Se uma parecia banda desenhada, outros pareciam aeróglifos, outros impenetráveis” (sic). Uma breve transcrição para exemplificar.
Por fim, o registo de que se trata de uma edição conjunta, em que um dos parceiros é o Museu Nacional de Imprensa. E lá está Luís Humberto Marcos, no prefácio, a aproveitar uma passagem da biografia para abordar a questão da censura, uma realidade absolutamente incontornável da imprensa portuguesa de grande parte do século XX. Que aproveite, pois, esta “memória”, nem que seja por abrir caminhos à descoberta.
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Manuela de Azevedo
Memória de uma Mulher de Letras
Museu Nacional de Imprensa e Edições Afrontamento, 15€