McEwan: Um grande romance, de escrita limpa
CRÓNICA
| agostinho sousa
Um retrato vivíssimo e envolvente da vida de Roland, personagem principal e narrador de uma história que vai desde a sua infância até à velhice, intercalada com uma série de marcantes acontecimentos históricos do século passado. Pelo meio ficam as venturas e desventuras dessa personagem, das suas expectativas, relacionamentos e desaires amorosos, uma relação marcante aos catorze anos com uma professora de piano, a insólita separação da sua primeira mulher e a morte prematura da segunda, uma carreira inicialmente promissora e a dura realidade profissional situada entre Inglaterra e Alemanha.
Haveria tanto a mencionar sobre o presente livro, mas não parece leal desfiar os inúmeros fios desse novelo. Destaco tão só a menção ao Rosa Branca, um grupo de jovens que lutou contra o nazismo em 1942, porque a atualidade não nos deve deixar indiferentes a radicalismos, cuja divulgação de panfletos foi interrompida pelos nazis, conduzindo-os à prisão e à condenação à morte, com um extrato de um desses panfletos:
«Os crimes mais desprezíveis do governo [nazi] que ultrapassavam drasticamente todos os padrões humanos… Nunca esquecer que todos os cidadãos merecem o regime que estão dispostos a suportar… actualmente, o nosso estado é a ditadura do mal». E de Aristóteles: «o déspota está infinitamente disposto a provocar guerras».
Pelo meio surgem os acasos das vidas que se vão entrecruzando com Roland, bem como acontecimentos históricos (a Cortina de Ferro, a crise dos mísseis em Cuba, a catástrofe de Chernobyl, a Queda do Muro de Berlim e a Pandemia, entre outros), capazes de alterar a vida do cidadão comum como quando Roland se encontra em frente dos despojos da sede da Gestapo demolida e compara a sua vida com o que poderia ter sido o seu destino:
«O Passado, o passado moderno era um peso, um fardo de escombros amontoados, de sofrimento esquecido. Mas o peso sobre ele estava num lugar distante. Quase não pesava. A sorte acidental estava para lá de todos ao cálculos, ter nascido em 1948 no pacífico Hampshire e não na Ucrânia ou na Polónia em 1928, não ter sido arrastado pelos degraus da sinagoga em 1941 e levado para ali. A sua cela branca – uma aula de piano, um caso de amor prematuro, uma educação perdida, uma esposa desaparecida – era, por comparação, uma suite de luxo. Se a sua vida até agora tinha sido um fracasso, como muitas vezes pensava, era-o perante a grandeza da história.»
Um grande romance, de escrita limpa, que nos vai dando pistas que encorajam a descoberta dos acontecimentos, sem uma ordem cronológica, com flashes que vão enriquecendo e entusiasmando a leitura, destacando a importância da memória como outra dimensão do real, com a particularidade de haver muitas semelhanças entre determinadas situações e a própria vida do autor.
São 640 páginas de leitura saborosa que prende, com alguns momentos portentosos, capaz de acelerar o desejo de chegar, quanto antes, ao seu final.
Espinho, 21/01/2023
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Ian McEwan
Lições
Gradiva 25€