Mário Rui Silvestre: o outro segredo de Fátima

1-O que representa, no contexto da sua obra, O Quarto Segredo de Fátima?
R-Há mais de quarenta anos estive ao serviço de uma distribuidora livreira, a que estava associada a editora  Caminho, depois vendida ao capitalismo da Leya, a qual tinha um projecto amplo de divulgação literária de qualidade, com mais de uma dezena de livrarias pelo país, e ainda mais  engagé em espalhar por toda a parte o engenho do materialismo dialéctico e das matrioskas, tudo hoje apagado da história que é dama volúvel que nunca está quieta com os pés. Foi isto antes da revelação do Terceiro Segredo de Fátima que o Papa João Paulo II assumiu como dizendo respeito a si mesmo, e ao facto de Nossa Senhora de Fátima ter desviado a bala para o matar, pois o bondoso Deus já o tinha escolhido para morrer em glória com parkinson. Nessa altura, nas viagens entre a livraria Caminho de Santarém e a livraria 18 de janeiro da Marinha Grande, costumava almoçar no restaurante de um amigo que havia trocado o God Bless America, onde não apareciam Senhoras de Fátima, pela Cova da Iria cheia de peregrinos, turistas esfomeados, e agnósticos curiosos, a quem ele fazia aparecer o melhor cozido à portuguesa a oeste da Serra d´Aire. Depois da bica, íamos fazer a digestão pelos lugares sagrados: a Capelinha, perto donde uns do Livre Pensamento haviam roubado a azinheira das ditas aparições; as grutas da Moeda, Alvados, Mira d´Aire etc. tudo cheio de emanações telúricas estranhas, a menos que ainda fossem os vapores retardados do White Horse tomado com a bica a fazer efeito, e foi destas viagens que Fátima me ficou atravessada nas sinapses de agnóstico empedernido, a que preside um diabinho sacripanta sem remédio, mas também uma ternura inexplicável por um povo crente, ingénuo, burro de carga de mil anos de trabalho duro e sofrimento, a que mais não restou que a crença mágica no céu dos anjos bons, à falta de outra bondade neste vale de lágrimas. Por este tempo já se falava muito naquele suposto Terceiro Segredo de Fátima como se aludisse a algo que servisse à felicidade terrena dos humanos, em particular dos mais desfavorecidos. Puro engano. Mais uma vez tudo apontava para um céu longínquo cheio de divindades egoístas, só a pensar em si e no sacrifício humano em sua honra, em que um Deus bondoso salva o seu Papa de ser assassinado e o mata de parkinson, e nada se diz sobre este céu dos pardais onde quase todos sofremos e respiramos, e hoje quase o não podemos fazer com este vírus, nem nos lugares ditos sagrados onde padres e crentes tem que usar máscara, e onde um Ser todo poderoso e omnipotente nada pode contra um ínfimo dez réis de gente desse vírus. Foi aqui, fase à criancice dos três segredos revelados, que pensei numa sátira melancólica aos mesmos, e a um certo neo-jesuitismo obscurantista actual ( há outros jesuítismos, aquele humanista do padre Vieira, o céptico de Salazar e de um certo padre francês que na Brotéria desmascarou a impossibilidade teológica de Fátima, o light de Marcelo, outro científico de alguns padres que aperfeiçoaram a teoria da relatividade de Einstein etc.), tudo apoiado na vasta literatura fatimita disponível com excepção do episódio do roubo da azinheira, cujos alguns protagonistas do mesmo e seus familiares que ainda conheci, me contaram aquele episódio quase ignorado, apenas aludido pela rama nos jornais da época bem como a forma como se construiu o mito. Claro que se trata de um romance, ficção portanto, eu digo que o narrador diz que um autor anónimo de um certo manuscrito tinha escrito etc. do estilo. Tirando isto o entrecho que abarca, muito além de Fátima, factos milenares que lhe estão associados, além de um brincadeira charadística que rigorosamente remete para a Teoria de Tudo da Física actual,  pode ser facilmente verificado tanto na história, como na ciência e literatura, em particular na medieva onde radica este Quarto Segredo de Fátima. Neste contexto, e no de se tratar ao jeito policial também duma sátira alegre aos Dan Browns actuais que, como diz uma personagem «vendem melhor do que escrevem», este é na minha obra, se este nome pomposo tem algum significado pois todos os livros não passam de um palimpsesto interminável, o romance mais visceral, irónico, erudito e nostálgico, a um tempo.

2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-A ideia partiu do que fica descrito acima. A motivação próxima foi assitir há dois anos, numa praça da cidade de Tomar, terra dos Templários, a algumas cenas da rodagem de um filme internacional «Fátima», que promete ser, em servilismo canónico, deturpação histórica, e mau gosto musical, ainda pior que os anteriores ( a estreia estará prevista para abril próximo si vera est fama). Esta obra é, se não erro, a primeira romanceação literária daquele fenómeno depois que um grande e quase esquecido escritor português, Tomás de Figueiredo, companheiro de Brandão e Aquilino na Bertrand, escreveu o «Fátima»( 1936), para agradar à Igreja ultramontana e à «vidente» Lúcia, o que levou os colegas risonhos a dizerem-lhe que «precisava as mãos cortadas». O certo é que a obrinha não consta hoje do corpus do grande escritor da «Toca do Lobo».Os tempos mudaram, e à Igreja e Sousas Laras que contribuíram para o Nobel de Saramago, tanto se lhes dá que se riam daquilo como não. A Senhora de Fátima há-de ser apeada do lindo andor onde a levam a passear ante o êxtase e lágrimas dos crentes, e entrar no panteão dos deuses mortos onde estão Zeus, Mitra, Endovélico e tantos outros, depois de milénios de serem adorados, mas isso ainda vai demorar um século ou dois. Até lá não nos doa a barriga.

3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Neste momento não estou a escrever nada, nem a pensar nisso. Horroriza-me este processo de baralhar e tornar a dar contínuo, ou roda de azenha, de certos autores que, mais sinestesia menos semantema, trocados os nomes às personagens, andam há quarenta anos a escrever o mesmo livro, com bonomia dos leitores, e passam entre um e outro o tempo a falarem de si próprios, e nalguns casos a receber os prémios do júri que passarão depois a integrar para o dar aos colegas, sempre os mesmos ou conhecidos, num processo que dura desde o tempo da Maria Castanha e não tem fim à vista, que a terra é pequena e o número de leitores o mais baixo da Europa, com tendência para descer o que não admira. Se a missão tripulada a Marte,  prevista para daqui a dez anos, descobrir lá uma Nossa Senhora de oito tentáculos a falar às cianobactérias do cimo do vale Marineris, apelando à conversão dos restantes marcianos e alertando para o perigo dos buracos-negros, provando com isto a universalidade do catolicismo ( do grego katholikós –  universal)  prometo ir a Fátima a pé penitenciar-me de ter escrito este romance.
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Mário Rui Silvestre
O Quarto Segredo de Fátima
Editora 5 Livros  19€

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