Mário Henrique-Leiria: toda a ficção de um verdadeiro revolucionário
CRÓNICA
| agostinho sousa
Autor surrealista, de corpo e alma, tanto nas intervenções artísticas como cívicas. Prova disso está patente no conjunto das suas obras completas, promovida pela Editora, quanto à ficção, poesia, obra gráfica, manifestos e textos críticos. Bem-haja pelo esforço dessa iniciativa que retrata não só esta escrita singular, como outras áreas artísticas e os contextos em que interveio.
Mário-Henrique Leiria, correligionário de Cesariny, Cruzeiro Seixas, António Maria Lisboa, entre outros, foi um verdadeiro revolucionário tanto na criatividade como na participação cívica (chegou mesmo a fazer parte de um grupo que preparou um ataque abortado ao Rádio Clube Português no fim dos anos 1960, com vista à insurreição radiofónica contra o regime fascista e que, tendo sido descoberto, viu-se obrigado a exilar-se no Brasil).
Cheguei ao seu conhecimento por mão amiga que mencionou “Os contos de Gin Tónico” como leitura obrigatória.
Os contos deste livro, maioritariamente curtos, alguns mesmo muito sucintos – para mim os melhores -, retratam tanto o Portugal cinzento do salazarismo como o período revolucionário pós-25 de abril, de maneira contundente, parodiando personagens características dessas épocas, com grande e profundo sentido de humor e non sence.
Complementarmente, a sua escrita tem uma capacidade de caracterização de personagens ou situações de forma sintética e sugestiva, como no início do conto “A velha e as coisas» que retrata um ato eleitoral num regime totalitário, com a particularidade de ter sido, corajosamente, publicado em 1973:
“Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Logo, é evidente, as coisas tinham de ser pequenas, para caberem.
Daí os partidos. Havia o partido Blicano e o Partido Crático; assim reduzidos, cabiam. Eram a Oposição.
Além disso, havia a Posição. O General, os Dois Coronéis, o Sargento (justicialista), o Professor Mustache, autor da Constituição e de «Cartas Patrióticas ao Corneta Pir» e a Velha dirigindo, claro.”
O início do curto conto «Discussão» é também prova disso:
«Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas, bodes, camponeses, galinhas, matemáticos e virgens loucas e dão-se a todos os mesmos direitos. Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa». Pelo que apetece acrescentar: parece-me um erro cómico. E no meio da paródia das situações acontece o impensável como em o «Casamento»:
“«Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.»
Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto estrangulei-a e fui-me embora.”
O lado burlesco também se encontra nos nomes de algumas das suas personagens: Gualtério, Tião Medonho, Segismondo, Gumersindo, Cabo Ludovino (que atira o presidente do governo pela janela de um quarto andar, após este lhe ter solicitado uma remodelação ministerial que ele cumpre à risca através do fuzilamento de todos os ministros), Asdrúbal, Josefino, Dona Abramonte, entre tantos outros. Fez-me lembrar Juan Rulfo, escritor mexicano, quando andava pelos cemitérios à procura de nomes singulares para as suas personagens.
Haveriam mais exemplos a dar, mas o melhor mesmo é ler as mais de 700 páginas, desta obra completa, na descoberta de tantas situações insólitas e divertidas.
Espinho, 25/04/2023
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Mário-Henrique Leiria
Obras Completas de Mário-Henrique Leiria – Ficções
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