Mário Carneiro: “O politicamente correcto perpetua os estigmas”
P-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Uma Noite Descansada. Dez Contos Tradicionais Politicamente Correctos»?
R-A ideia inicial tem mais de 30 anos e acabou por me esmagar ao longo do tempo: ambicionava fazer um “Dicionário Português- Português Politicamente Correcto”. Os anos passavam e não tinha ainda conseguido passar de “Abóbora-Menina” e isso causava-me uma enorme sensação de que, mais tarde ou mais cedo, alguém teria a mesma ideia e editaria antes de mim fazendo com que todo o meu trabalho fosse por água abaixo. Ainda assim não tinha desistido da ideia: apenas investia menos nela, como forma de me precaver da tal desilusão. Foi quando começaram a vir a público notícias sobre a amputação/transformação de contos e histórias infantis, em particular com as alterações à obra de Roald Dahl, que me apercebi de que bastaria mudar o enfoque da minha ideia inicial para que o trabalho, e em especial a sua mensagem, ganhassem a pertinência que a actualidade lhes acrescentava. A isto juntou-se a circunstância fortuita de ter encontrado na convalescença de uma perna partida a ocasião para não poder, agora até quase literalmente, fugir mais.
P-Até onde poderá ir esta nova realidade que surge cada vez com mais intensidade em torno do politicamente correcto?
R- Se me preocupo com o ponto onde esta “nova realidade” já chegou, prefiro nem me debruçar sobre o cenário de pesadelo de pensar até onde pode ir. No essencial vivemos, na minha opinião, uma tentativa de doutrinação que se estrutura, essencialmente, à volta de três P´s: 30% de Patetice, 30% de Paternalismo e 30% de Puritanismo. Concedo que possam sobrar 10% de boas intenções e mesmo assim metade delas são parvas. Ainda por cima o politicamente correcto perpetua os estigmas que, teoricamente, visa eliminar. Por exemplo: ao criar eufemismos que fazem com que o excesso de gordura não implique a adjectivação com “gordo”, esta doutrina não retira um grama de tecido adiposo a ninguém mas aumenta o peso de uma nova qualificação em que se parece estar a apontar um foco àquilo que se pretende não seja sublinhado. É absurdo! Claro que não devemos ofender ninguém nem exercer qualquer outro tipo de discriminação mas isso são exercícios de educação e de civismo e não meros jogos de palavras que deixam o essencial por fazer. Insistir na mudança das palavras sem que se comece pela mudança de atitudes é uma hipocrisia completa.
P-A ironia tal como a pratica é uma boa resposta?
R-É a minha resposta: não sei se é a melhor mas é aquela que me sinto na obrigação de dar. Nada expõe mais o ridículo do politicamente correcto do que usar a sua linguagem para o descrever, para o caracterizar. Teorizar muito à volta do conceito e da prática dá-lhe uma aparência de ciência ou de prática consensualizada que não correspondem à realidade. Pelo menos não correspondem no momento em que estamos.
P-Os seus dois filhos já leram o livro?
R- Não leram porque estão, muito legitimamente, em greve até que eu lhes faça uma dedicatória em cada um dos seus exemplares. Eles sabem que vai demorar o seu tempo porque não quero deixar apenas umas palavras de circunstância a cada um deles: não o faço como ninguém e muito menos o faria com os meus filhos. Sinto nas palavras que (lhes) escrevo uma possibilidade de serem perpétuas e não convivo bem com a ideia de que elas não toquem quem as lê de forma a que as sinta.
P-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R- Não estou a escrever nada em termos de publicação. Se este livro tiver boa receptividade tenho algumas ideias para continuar no mesmo terreno. Mas não é imperativo que assim seja porque – lá está! – não quero apenas alinhar umas palavras.
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Mário Carneiro
Uma Noite Descansada. Dez Contos Tradicionais Politicamente Correctos
Guerra e Paz 16€