María Gainza: Não somos todos nós falsificadores?

CRÓNICA
| Célia Gomes

[Fotografia: Roxana Schoijett]  Foram duas as vezes que percorri os cantos e recantos do «Hotel Melancólico» e, muita mais vezes percorreria, pelas palavras, pela arte e pelo voo que nele encontrei. Não encontrei expetável tristeza, nem me esbarrei com Máximo Simpson e o poema ao hotel dedicado.  Antes me cruzei com o espanto, com poetas, pintores, fotógrafos e outros artistas. «Gente apaixonada que quando estavam refastelados em poltronas coçadas, a conversa produzia neles o mesmo efeito da música, Eram todos inteligentes, todos tinham talento, mas não iriam longe». Era lá que, no meio de marijuana, de baldes de tinta e dos livros de kafka, vivia o bando dos falsificadores melancólicos. Anos sessenta, a idade de ouro da falsificação na Argentina.  Nele se alojou, também, a Negra. Negra, a maior falsificadora de quadros, principalmente de Lydis. Lá viveu até desaparecer sem deixar rasto, mas deixando alma. «- Como era ela? Tão bonita quanto dizem? -Era esplendorosa, lúgubre, singular. Tinha uma presença que lembrava a deusa Lilith cujo fogo ilumina, mas queima (…) e que sempre fugiu do mundo com muita determinação» Perante tal retrato, também a mim me apeteceu sair do meu mundo, fugir para Buenos Aires e ajudar a narradora a procurar esta «femme fatale» e, aprender com ela, a atravessar a linha entre o bem e o mal, a ser irmã da noite e a repelir, com determinação, a banalidade. Pensando bem, não sei se procuraria a Negra ou se procuraria Maria Gainza, a autora, para com ela dançar tango com as palavras e render-me à sua escrita. Elogiá-la por este livro, um romance onde convive intimamente a literatura e a pintura, onde são mencionados escritores e desfilam artistas, numa narrativa onde a realidade e a ficção se fundem, ficando o leitor confuso, sem saber onde termina uma e começa a outra. Rendi-me a  Enriqueta Macedo, a chefe do departamento da avaliação do Banco Ciudad, que «acreditava na arte com uma fé que roçava o esotérico» , ( também eu acredito, Enriqueta) e à qual a narradora, sua  colaboradora, se afeiçoou vendo nela « uma artista sem obra, uma obra de arte em si mesma» e que passou a ser o seu modelo de perfeição, a sua mestre , chegando a desabafar  «Desde a sua morte há um pedaço de gelo no meu coração».  Nada a acrescentar! A este respeito já  William Blake proclamava «a ave constrói o ninho, a aranha a teia; o homem a amizade». Enriqueta, portadora de um segredo obscuro, escondido dentro do seu casaco de pele e do seu porte altivo. Coautora de crimes de falsificação. «Durante quarenta anos a reta e inacessível Enriqueta Macedo fizera passar obras falsas por autênticas». Quem não gosta de uma vilã cheia de elegância, defensora de que «falsas eram as obras de arte de qualidade duvidosa»? Vou mais longe, não seremos todos nós falsificadores? Não de Lydis, de Berni ou Figari, mas da obra de arte que é a nossa própria vida? Falsificamos quando cedemos sem concordar. Falsificamos quando aprisionamos o nosso próprio destino. Falsificamos quando trocamos uma vida de magia por uma vida comodista. Falsificamos quando nos adaptamos  a um  morno gostar  sem coragem para galopar num ardente amar.
Engraçadas foram, também, a série de coincidências (gosto mais de lhe chamar destinos invisíveis) que me aconteceram no decurso da leitura do livro. Iniciei-o a caminho de Madrid, para ver uma exposição de Marc Chagall, sendo que uma das personagens do «Hotel Melancólico», Matilde, era descendente direta deste pintor, sendo referida nas suas obras. Li grande parte do livro no dia 26 de abril, sendo que, foi neste dia, em 1970, que morreu Lydis, pintora sobejamente falsificada nesta obra tendo, inclusive, a narradora, organizado um leilão para venda dos seus objetos pessoais. Por último, no momento em que Lozinski, um dos hóspedes do hotel, se refere a Minerva e à sua coruja, estava de livro aberto, na esplanada do «Círculo das Bellas Artes», vigiada pela estátua dessa Deusa aí erguida e que é símbolo desta Instituição. Que mais dizer? Apenas que, em Madrid,  no Museu do Prado, não sei se pelo fascínio dos relatos de Silvia, de Edgardo, de Roberto e de muitos outros entrevistados pela narradora, acerca do misticismo de «Negra», certo é que  ao contemplar as «Três Graças» de Rubens  dei por mim a pensar que se fossem pintadas pela «falsificadora mais original de todos os tempos» talvez   tivessem muita mais graça!
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María Gainza
Hotel Melancólico
D. Quixote  14,90€

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