A marca vitriólica do Barreiro

Há pouco mais de um século, a mão de um grande industrial lançou no Barreiro, margem Sul do Tejo, em frente de Lisboa, a semente do que viria a ser o maior empório fabril português. Assim nascia um conglomerado de empresas que marcaria a vida económico-financeira do país durante grande parte do século XX, quase sete décadas.
Assim nascia um conglomerado de empresas que durante grande parte do século XX marcaria a vida económico-financeira do país – e do Barreiro. Disso dá conta Jorge Morais
Foi um passo de gigante o que Alfredo da Silva então deu, atravessando o rio com a produção de adubos, que fabricava em Alcântara. Do lado de lá, aproximava-se do grande local de consumo desta sua produção – as terras cerealíferas do Alentejo – e ficava com uma matéria-prima essencial, as pirites dali provenientes, mais acessível pelo transporte ferroviário, uma mais-valia logística e económica.
O ácido sulfúrico, pois claro. As pirites são a base da síntese do ácido sulfúrico, que como o autor assinala foi o químico inorgânico que mais pesou na economia das nações, no século XX. Ele era usado na produção de fertilizantes, mas também nos decapantes, detergentes, ácidos, sulfatos, refinação do petróleo, papel.
As unidades do Barreiro fortaleciam-lhe também a posição nos óleos, que produzia em Alferrarede, um ramo de negócio que incluía o sabão e as estearinas. A nova posição estratégica garantia-lhe uma posição hegemónica no mundo das oleaginosas, a via para o monopólio, que passava igualmente pelo transporte fluvial e marítimo, tanto na distribuição dos produtos acabados como na recepção de matérias-primas de outros meridianos e latitudes. E, em crescendo, o estuário ali à beira, estava mesmo a pedir o lançamento de uma empresa de transporte marítimo, e quem diz isto por que não pensar em estaleiros? E, depois, tudo o resto que viria a constituir o universo CUF – Companhia União Fabril.
Pensar grande, pensar futuro, foi o que Alfredo da Silva fez, quando em 1907 adquiriu os terrenos de uma anterior fábrica de cortiça. Foi a partir desse espaço fundador que ele consolidou o grupo industrial que mais tarde passaria ao grupo familiar dos Mellos, sendo que um dos seus principais protagonistas no pré-25 de Abril e nos tempos que se seguiram, de tentativas de refundação e recuperação, José Manuel de Mello, morreu há ainda pouco tempo. Incensado, pela dimensão e significado do império cufista.
Claro que um aparelho industrial da dimensão referida polarizaria a vida da terra. O Barreiro dos anos 60, o eixo desta abordagem – talvez tempo da infância do autor, quando “viu” a vila com olhos de menino – fervilhava em torno dos turnos fabris, dos incidentes, ritmos, produções, vida associativa e social que a organização industrial proporcionava – e determinava.
Uma das ruas centrais da vila era a do Ácido Sulfúrico, ainda hoje existente, num espaço “civil” conquistado à adormecida e/ou aniquilada actividade industrial de há quase quatro décadas. Outras ostentavam nomes como o de Rua dos Superfosfatos, Travessa da Glicerina ou Rua da Pirite. Eram, na verdade, estes, pilares do fervilhar da terra.
Um quotidiano que o autor tão bem sintetiza na evocação da sirene do meio-dia, “a poderosa ‘buzina’ que ecoava por toda a freguesia chamando dez mil almas à pausa do almoço”. Como este aviso, eram os ritmos das fábricas que determinavam tudo o resto, nos seus 200 hectares que ocupava na fase final, tendo sob a sua alçada linhas férreas privativas, bairros de habitação, refeitórios, laboratórios, escolas, posto médico, bombeiros, etc..
Uma organização social, a do Barreiro, que obedecia a um figurino político-social herdado da segunda metade do século XIX e prevalecente na Europa até depois da Primeira Grande Guerra, assente, como recorda o autor, na figura do “patrão-pai”. A obra social lançada por Alfredo da Silva logo com o arranque da implantação do pólo industrial foi nessa linha.
Mas não era esse mundo, por si, uma garantia de paz. Alfredo da Silva já tinha provado o sabor (e revezes) das lutas operárias e políticas, sobretudo na sequência do sidonismo, que apoiou. E assim procurou refúgio em Paris, certamente espevitado pelas greves no Barreiro e dois atentados pessoais. O seu nome, esteve, de resto, lembra o autor, inscrito na lista negra da “noite sangrenta”.
Não é que, em 1907, o fundador da CUF desconhecesse as tradições do Barreiro, já não “uma pacata terra de pescadores e camponeses que repentinamente despertasse para o progresso tecnológico”. Não, Alfredo da Silva sabia “que não encontraria uma população dócil, acomodada ou subserviente, quando começou a contratar operários no Barreiro”. Mas acreditou no efeito atenuador da obra social que trazia para aplicar – e concretizou.
Os tempos menos pacíficos atravessariam, naturalmente, as longas décadas de crescimento do império da CUF. Os últimos anos antes do 25 de Abril de 1974 registariam focos de perturbação social, com a presença da GNR cada vez mais necessária à dissuasão dos contestatários. Assim aconteceu nos anos 60, e até antes: por exemplo, em 1943, pouco depois de D. Manuel de Mello, genro de Alfredo da Silva, assumir a presidência da CUF, as fábricas foram atingidas pela greve e o “Barreiro submetido à tutela militar”. Tudo isto, apesar de uma relação tensa com o salazarismo, que Alfredo da Silva já arrastara, com algumas vitórias, e que os herdeiros Mello assumiram e mantiveram. Com lucros.
Quando o 25 de Abril se apresentou como obra feita, o quadro já não era brilhante neste como noutros grupos industriais, portugueses e não só. Jorge de Mello é aqui evocado na sua recordação de que “a fase final do regime é uma corrida contra o tempo, procurando internacionalizar o grupo, explorando as suas possibilidades de abertura na sociedade portuguesa, sobretudo em direcção à Europa”. A crise do petróleo fazia-se um grande abanão, já tremiam as grandes economias mundiais.
O Barreiro ficou como é hoje, comido lentamente pelas nacionalizações, por essa crise que lhes era alheia. E paralisado, até hoje, o aparelho industrial que ocupava grande parte do seu território, uma mescla caótica de actividades que se cruzavam, enfrentavam e que muitos detestavam – apesar de delas dependerem economicamente. E até o característico smog barreirense, que tantos protestos alimentava, acabou de vez.
O definhamento das indústrias, sob a novel designação de Quimigal, mais o dos caminhos-de-ferro que alimentavam outro pólo, o das oficinas da CP, ditou o marasmo de hoje. A concentração industrial cedeu o passo a um dormitório de novas e velhas urbanizações, o desânimo tomou conta das antigas e novas gentes, a esperança até já reside na nova ponte que há-de atravessar o Tejo e atracar no Barreiro exactamente no ponto onde já houve CUF.
Paradoxos dos tempos. E, tudo somado, lembra o autor, resta hoje “no Barreiro uma memória benévola, temperada pelos senões que qualquer actividade humana comporta”. Uma memória benévola, diga-se, que cada vez mais se fez complacente no sentido de comprazimento – uma imagem de marca dos nossos tempos face ao passado, mesmo que amargo. Não é assim com o chocolate?
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Jorge Morais
Rua do Ácido Sulfúrico – Patrões e operários: um Olhar sobre a CUF do Barreiro
Bizâncio, 12, 15€