Mar Becker: “Uma canção que quer fazer cumprir na língua a vida desses restos, dessas ruínas”

1-O que representa, no contexto da sua obra, o livro “Canção Derruída”?
R-“Canção Derruída” nasceu da ideia de reunir num só volume o “Sal”, na íntegra, que havia então recém-saído no Brasil, e uma seleção de “A Mulher Submersa”, meu livro de estreia, seção em que pude reescrever alguns poemas e incluir ainda vários inéditos, relacionados àquele universo. Quem acompanha minha lida já há mais tempo vê que a escrita em mim é um contínuo, e nesse sentido “Canção” surge como desdobramento, curva de uma obra que está sempre em curso.
Diria que há no que escrevo, e isso desde o começo, uma fidelidade aos vestígios, aos rastros, sobretudo aqueles próprios de uma intimidade doméstica. Aqui me interessa essa abertura à perscruta de corpos e gestos de mulheres, o que aí carregam de insidioso, de incêndio consumindo-se a frio. São mulheres que muitas vezes não têm rosto; quando têm, permutam-no com enorme facilidade, são rostos feitos d’água.
Mesmo quando vêm pela miragem da mãe, da irmã, da avó, das vizinhas, elas surgem como figuras gerais, sempre à volta. Circulam por cômodos, quartos. Respiram e são respiradas pela casa, misturam-se e confundem-se com o espaço ─ no que entendo como o apelo de uma erótica obscura. Vagueiam, cozinham, espreitam-se, amam. Gosto de concebê-las ensimesmadas, como se elaborando um dialeto próprio à hora frágil do dia, na divisa aquela em que os objetos são vistos na vacilação da penumbra, entre noite e manhã. Acercam-se das janelas. Tocam os vidros embaçados.
“Canção Derruída” se ergue desse lugar, é uma canção que quer fazer cumprir na língua a vida desses restos, dessas ruínas. Por sua própria natureza, seu pendor ao despedaçamento, essa canção mal se sustenta na palava, por vezes escapa. Nesses instantes, arpeja em registro de rumor.
Quando fechamos a edição de “Canção”, não havia ainda um título. Passei dias tentando alcançá-lo, perguntando-me sobre o lugar em que se cruzavam um livro e o outro. Foi nesse tempo que pude reconhecer o que ambos tinham em comum e o que tinham de particular. “A Mulher Submersa” é um livro mais coletivo, mais vociferante, enquanto “Sal” se dobra sobre si, afeiçoa-se à secretude e ao sussurro. Em afinidade, partilham esses caminhos por um imaginário inclinado ao vestígio, que prefere explorar as coisas partindo das notícias de suas ruínas.
E foi desse termo, “ruína”, que nasceu o título. Pensei aqui comigo mesma, se há um arco entre esses dois livros, então é um arco em canção. Mas essa canção derrui-se à medida que canta, despedaça-se, esfarela-se – e volta a alçar-se. Assim a sinto.

2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-Esses dias escrevi assim sobre “Canção”:

a canção derruída. esta escrita, por onde o dizer avança em estado de esfacelamento
da música, notícia disso. apresento as mãos, e nelas a carcaça musical desfia-se
pelos dedos ─ uma corda azinhavrada, uma gargantilha sem garganta em mãos, no
pingente uma pedra qualquer lisa como um dentinho, algo que quando fecho os
olhos e sinto nos dedos confundo com um predatório canino de criança

Diria que é um livro que parte da ideia de estabelecer-se como testemunho possível de uma poética da intimidade (a desamparada intimidade da casa, do corpo, do desejo, do amor, dos mortos), aqui explorada pelo que carrega de rumor, pelo seu tracejado de rastro (rouquidão, música esfacelada). É isso, entendo, o que reúne as duas seções da publicação como um só livro. Relativamente às diferenças entre elas, acho que há toda uma inclinação à imobilidade (ou à lentidão) em “Sal”, e que, me parece, ganha ali contornos erógenos; surge uma “lentíssima lepra floricultora”, como uma garoa – estranha, hostil, sussurrante (tendo a querer mencionar o “feminino de ninguém”, de Maria Gabriela Llansol, que foi tem sido tão presente em mim). Nesse sentido, “Sal” distancia-se de “A Mulher Submersa”, que é mais caudaloso, feito em “cheias” (ecoando vozes), mais fiel ao próprio movimento da água em estado de rio, de mar. Ano passado, quando elaborava internamente a passagem de uma publicação a outra, escrevi assim:

como costear essa mulher [em “sal”]? sua sensualidade áspera? recuar diante dela.
olhá-la ─ em seu arrojo de ave entre facas, suas espáduas

[dói numa mulher o amor ali onde desde o início dói-lhe a carcaça do mar]
sinto que é um projeto mais entranhado em meu imaginário particular, este

não há “mulheres muitas” em “sal” (como havia em “a mulher submersa”), há (me
parece) a mulher-nenhuma, sem rosto

penso ter querido com a escrita aqui a conflagração de uma “nova ordem de
vísceras”. tenho gostado de imaginar que certos livros foram educados por aquela
espécie de flor (ou de planta, não sei) que repele o toque. são livros que se dobram
sobre si, que se preservam também como ilegibilidade e noite

a língua vai-se apaixonada pela noite

(um livro em solidão, como é o próprio amor. o amor quer-se a sós, quer-se ali onde

nos encontra sem nós)

3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Como de costume, tenho trabalho com muito material ao mesmo tempo… Nisso, dois livros vão se configurando, com destinos já mais ou menos estabelecidos. A ideia é fechar um deles ainda este ano, vamos ver. Não posso ainda dizer muito a respeito, mas tem sido feliz trabalhar neste curso, sentir que terão mão editorial de cuidado, em todos os sentidos; é com todo um fogo dentro que os carrego.
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Mar Becker
Canção Derruída
Assírio e Alvim  16,65€

Mar Becker na “Novos Livros” | Entrevistas

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