Manuel Vilas: A alegria é como o oxigénio
CRÓNICA
|agostinho sousa
Apetece transcrever a primeira página deste livro, onde é arremessada a sua semente, mas fiquemos pelo primeiro parágrafo: Tudo aquilo que amámos e perdemos, que amámos imensamente, que amámos sem saber que um dia nos seria roubado, tudo aquilo que, após a sua perda, não conseguiu destruir-nos – embora tenha insistido com forças sobrenaturais e procurado a nossa ruína com crueldade e afinco – acaba, mais tarde ou mais cedo, transformado em alegria.
O título original do livro em castelhano é, pela sua síntese, mais intenso: Alegria. A alegria como o oxigénio que faz com que, tantas vezes, consigamos sobreviver às situações mais adversas e passemos a recordá-las, muitas delas, como algo episódico no nosso itinerário.
O autor recorda as suas vivências mais recentes como matriz para a busca da esperançada alegria, na relação com as pessoas mais queridas, pais, filhos, segunda mulher e irmão. Nesse intercâmbio de memórias e desejos, ele esforça-se por manter vivos os progenitores, no seu dia-a-dia, pois trazer os mortos para o presente nunca pode ser mau. Se não os trouxermos, mais morrerão. E nessa meada de situações surgem outras pessoas, tantas vezes em resultado do êxito que teve o seu anterior livro, Ordesa, onde apresentou um retrato despudorado e intenso dos familiares próximos, mais o divórcio do primeiro casamento e uma tomada de decisão difícil, mas muito importante: trocar a profissão de professor pela de escritor.
Se na primeira abordagem autobiográfica há uma revisitação ao passado para justificar ou encontrar um novo caminho, nesta há uma necessidade permanente da procura da beleza, em suma: da alegria. E encontra-a(s) em muitos momentos, mas fundamentalmente na relação que mantém e se esforça por preservar com os seus filhos, pensando no futuro, sedimentando alicerces. Poderá ser um lugar-comum, mas a forma como se expõe e entrelaça os momentos que desfia torna a leitura participativa e, tantas vezes, comovente. Confesso que, talvez por ter a mesma idade do autor, sinto muitas das suas preocupações, estados de alma, inquietações e esperanças, porque o tempo passado não pode voltar, mas há algo que volta sempre, que está sempre a regressar: o mistério.
E mesmo numa contradição é possível encontrar a desejada alegria: Claro que sei perfeitamente que Deus não existe. Mas há a beleza da ideia de um ser omnipotente nos amar. Amar-nos seja lá quem for, mas alguém amar-nos. É melhor amar-nos um ser de ficção do que ninguém nos amar.
E termino apenas com um, entre outros exemplos, por vezes tão simples e comuns, de episódios reais que motivam essa alegria. O caso da visita de um instalador ao seu apartamento para consertar a avaria de uma caldeira e que, depois de alguma conversa de circunstância, menciona com orgulho o nome de um dos seus filhos, por sinal igual ao de um dos avôs do escritor. O avô Leandro que não conheceu, mas que era recordado na família com um homem de bem. Na despedida, escreve Vilas, apertou-me a mão quando se foi embora. Eu acho que ele se apercebeu de que despertara na minha alma um profundo respeito, um respeito que não excluía a inveja benigna, porque eu já só invejo os afortunados de coração.
Os afortunados de coração, uma estirpe anónima; se a administração das Finanças os conhecesse, cobrar-lhes-ia impostos exorbitantes.
Mantenhamos o silêncio, caros invejosos benignos, a bem das nossas finanças e deste valioso livro! | Espinho, 16/05/2022
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Manuel Vilas
E, de repente, a alegria
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