Mais uma leitura de Abril

Tantos anos depois do 25 de Abril, não cessam os depoimentos, as interpretações, as versões (e aversões) sobre o que verdadeiramente aconteceu, quem era quem, o que falhou e não, os que endrominaram quem, as esquerdas e direitas (as várias), os objectivos encobertos e descobertos (às vezes sem apelo nem agravo). E não acabaria tão cedo a lista de razões e justificações para se manter o ritmo editorial tendo como tema o dia que mudou o mundo, se quiséssemos enumerá-las todas.
Mais, e pior (mas mais esclarecedor, em muitos casos…), é que actores da revolução se desencontraram, divergiram, tomaram caminhos diversos – com interesses igualmente díspares. Assim se tem assistido a polémicas assanhadas sobre os acontecimentos, mas muito centralmente sobre a preparação do próprio 25 de Abril de 1974 (e ainda do frustrado 16 de Março, que permanece sem explicação total), e o culminar do 25 de Novembro de 1975. Aqui, sobretudo, a paz é um vulcão adormecido.
O autor de “Capitão de Abril, capitão de Novembro” não deixa dúvidas sobre o seu percurso ao longo dos largos meses da revolução, sendo que no seu caso a participação, a alto nível, se prolongou até 1982, como membro do Conselho da Revolução (CR), neste ano extinto.
Depois disso, o silêncio, ou quase, de um capitão (era a sua patente, na altura da formação do Movimento das Forças Armadas – MFA, hoje é coronel) que já prepara um segundo volume sobre o período entre o 25 de Novembro e a extinção do CR.
“Acompanhem um jovem de 22 anos, saído da Academia Militar, prenhe de ideais, espírito de missão e patriotismo, de raiz camponesa, que cresce no Minho rural e conservador da década de cinquenta, educado num colégio católico e de seguida formado numa Academia Militar austera, fechada às ideias de mudança que em todo o mundo se disseminavam”, exorta Sousa e Castro logo a iniciar o seu balanço do “golpe”.
Um jovem que cedo é fascinado pelas fardas, e guarda na memória a passagem de Humberto Delgado por Amarante, em que ele viu os olhos do general cruzarem-se com os seus. Presságio ou estímulo?
Certo é que, lembra-nos agora Sousa e Casto, veio a sentir o peso da guerra (e dela regista o sem sentido) e percebeu que ela “prenuncia e determina a grande mudança política de 74”, deixando um apelo/desafio aos mais jovens para que reflictam “sobre a insanidade dos políticos quando governam sem o escrutínio do Povo”.
Merece aqui uma referência do autor à validade do seu testemunho, provavelmente acreditando na hipótese bem provável de vir a ser contestado. Trata-se, o seu trabalho, de “um relato de vida que cruza momentos relevantes da nossa história recente”, que procurou descrever “fiel a mim próprio e à minha forma de entender a realidade”.
O prefácio, esse, vem pela mão de Marcelo Rebelo de Sousa, algo distante, justificado pelo facto de serem conterrâneos – “Em Portugal, ser-se conterrâneo ainda é argumento definitivo em termos de disponibilidade para secundar alguém”, escreve o comentador político. E salvaguarda: “Do que se passou dentro desse MFA não tenho dados para ajuizar da versão do autor, apesar de ter tentado – entre 1974 e 1976 – analisar semanalmente, no Expresso, aquele verdadeiro turbilhão chamado PREC (Processo Revolucionário em Curso)”.
Ou seja, estamos perante versões/interpretações que não serão, pelo menos algumas, pacíficas, pois desde cedo na versão de Sousa e Castro começa a desenhar-se uma separação das águas – spinolistas e kaulzistas não são poupados nas suas tentativas oportunistas (ao que relata) de cavalgarem montada alheia (a do MFA, no caso).
Mas na ponta da navalha estão igualmente os protagonistas de derivas de esquerda, como a do PCP, que Sousa e Castro sintetiza em dois momentos. Por um lado, pela forma como ele se iniciou no processo de contestação ao regime salazarista/caetanista: “Quando se dá o 25 de Abril, eu nem sabia que o Álvaro Cunhal era o líder do PC”.
Meses depois, quando o “caso República” parecia incendiar o país, ouve Cunhal contrastando as dinâmicas eleitoral e revolucionária, dirigindo-se ao CR e ao próprio Presidente da República, Costa Gomes. “De um lado a dinâmica revolucionária, do outro a dinâmica eleitoral que tende a travar o processo revolucionário e a reconduzir o país para um processo que não é o que está traçado”.
Interroga-se agora Sousa e Castro, por que razão ninguém perguntou “que processo fora traçado e por quem”. Mas os lados da barricada são assim confirmados, Vasco Gonçalves incluído, como recorda por ocasião de uma “seca” de três horas de conversa com “um ‘velho’ coronel, com uma linguagem radical, estereotipada, redutora, sem centelha de inteligência”.
Otelo e outros adversários/inimigos do “grupo dos Nove” (que o autor integrou) são igualmente passados pelo fio das críticas, das dúvidas, das contradições…
Não será necessário pôr mais na carta, a leitura histórica que o autor proporciona tem o sinal das suas opções. E não deixará de proporcionar elementos para o cotejo de versões e posições dos protagonistas de uma página tão importante da História de Portugal.

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Rodrigo Sousa e Castro
Capitão de Abril, capitão de Novembro
Guerra e Paz, 28,85€