Magda Pinheiro: “Lisboa é um sítio maravilhoso”

Uma cidade com alma, feita de gentes e espaços, memórias gratas e tragédias difíceis de esquecer, um passado marcado na arquitectura, no urbanismo, na vida colectiva da capital e do País. É essa História, dos primórdios aos nossos dias, que Magda Pinheiro apresenta na sua “Biografia de Lisboa”. Um livro repleto de História e de pequenas histórias que a especialista em História Urbana recolheu ao longo de uma profunda investigação e agora desvenda aos leitores.
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P – A biografia é, como bem o diz, uma espécie de operação de escrita pós-mortem. “Apesar da morte anunciada, a maior parte das cidades têm, ao longo dos tempos, manifestado uma forte capacidade de regeneração”, escreve. Lisboa tem a morte anunciada? Ou estará a regenerar-se, a ressuscitar?
R – Lisboa não tem morte anunciada. Está bem viva. Referia-me, nessa passagem, ao livro de Jane Jacobs Vida e Morte das Grandes Cidades. Para Lisboa se regenerar precisa de conservar a sua população e reabilitar o seu património com mais determinação do que vem sendo feito.

P – Será, afinal, que a iminência do colapso e o acumular de tensões se repetem? Recorda, por exemplo, as tensões supervenientes à I Guerra Mundial; ou “o medo e a suspeita”, com “crises alimentares”, nos cercos de 1373 e de 1384; ou depois a chegada das tropas napoleónicas. É uma fatalidade de capital ou uma fragilidade lisboeta e portuguesa?
R – A História de todas as cidades tem momentos mais ou menos dramáticos e momentos de esperança no futuro. Cada cidade tem uma história específica e a população de Lisboa, como a de outras cidades, viveu momentos trágicos. Nos séculos XIX e XX Lisboa foi muito poupada. Durante a Segunda Guerra Mundial não foi bombardeada – o que não impediu que parte da sua população vivesse em condições miseráveis, sem possibilidade de comprar os bens disponíveis no mercado negro ou mesmo livre. A última ocupação que Lisboa sofreu foi a das tropas napoleónicas, que no entanto não se traduziu em destruição. Não teve lugar nenhum massacre importante como o que se deu no Porto. Em História não existem fatalidades e não existe nenhuma fragilidade permanente de Lisboa. Pelo contrário, trata-se de uma cidade com uma localização invejável e um sítio maravilhoso.

P – O terramoto de 1755 é a grande ferida. Regista a perda da Real Ópera do Tejo, mas outras destruições igualmente importantes são recordadas, a nível patrimonial e cultural – além das pessoas. Outros terramotos, embora sem justificação geológica, influenciaram a fisionomia e a vida da cidade. Krus Abecasis, por exemplo, chegou a dizer que faria um terramoto em Lisboa, que depois dele a cidade seria outra. Tem sido decisivo este tipo de intervenção de governos e responsáveis diversos?
R – O Terramoto de 1755 não é uma ferida, pois deu origem a uma reconstrução que, embora lenta, foi determinante para a actual cidade e criou um património de que nos orgulhamos. É uma memória traumática pois ainda hoje dizemos que está um tempo de terramoto quando faz calor fora de época. Em todas as cidades as destruições, sobretudo os fogos, foram um importante factor de transformação urbana. Helsínquia e Londres são exemplos dessas intervenções.
Em Lisboa não houve intervenções destrutivas maciças como a de Haussman em Paris. Os planos foram sobretudo de expansão. Todas as intervenções, mesmo as que deitaram a baixo edifícios, foram cirúrgicas. A mais destrutiva foi o prolongamento, durante o Estado Novo, da rua da Palma, que criou o espaço aberto do Martim Moniz. Tem sido difícil de cicatrizar. Abecassis descurou o centro da cidade e as floreiras que implantou podem ter dificultado o combate ao incêndio, mas foi tudo.

P – Ainda a propósito do acervo perdido, seria ele realmente tão valioso como alguns autores calculam? É que, por exemplo, regista a propósito da invasão francesa a avaliação de viajantes estrangeiros no sentido de menorizar a importância de espólios como o do Real Gabinete de História Natural da Ajuda, entre outros.
R – Creio que o terramoto teve um efeito destrutivo sobre as colecções de Arte e o património arquitectónico, deixando pouco da Lisboa renascentista de pé. No entanto percebe-se cada vez mais que muito do que estava no Paço continua a existir, embora tenha sido disperso. Lisboa nunca foi um centro de produção científica ou artística que se destacasse a nível internacional. Talvez nunca se distinguisse tanto como hoje.

P – Portugal, país macrocéfalo, do jornalista Silva Costa, foi nos anos 60 uma obra que entre o mais acentuou a vertente centralizadora do poder do país em Lisboa. No epílogo do seu livro, considera que o país é hoje «mais pequeno graças às estradas e aos centros comerciais que têm os mesmos produtos em toda a parte». Mas será que Lisboa deixou de ser o grande centro de atracção? A macrocefalia?
R – A teorização da macrocefalia bebe nos fisiocratas do século XVIII e teve também uma grande voga entre os geógrafos franceses do pós-guerra. Naturalmente influenciou os intelectuais portugueses desse período. Não me parece um conceito operatório muito adequado, prefiro dizer que Lisboa é uma cidade primada. Lisboa foi um nó importante numa rede de comércio internacional desde a Renascença. Foi depois uma cidade imperial. Essas situações determinaram o seu crescimento. Teve de se adaptar sempre que perdeu essa situação, mas é graças a ela que temos o património hoje existente. A população do resto do País continua a ter arquétipos negativos em relação a Lisboa, embora os habitantes já não se distingam no seu aspecto dos lisboetas.

P – A contradição entre o cosmopolitismo e os saloios é uma velha pecha da capital portuguesa, que valoriza. Mantém-se esse espírito provinciano dos autóctones?
R – Os saloios não são provincianos, são os camponeses da região de Lisboa. Lisboa foi provinciana no século XX porque foi da província que veio a maioria da sua população. Os bairros populares, chamados típicos, estavam cheios de provincianos, como os estudos de Firmino da Costa e Graça Índias Cordeiro mostram. Há uma conotação pejorativa do termo saloio que significa pessoa de mau gosto. O mesmo acontece com o termo provinciano. Esse tipo de desprezo sempre existiu nas cidades e nas vilas. Em Almada os camponeses do concelho chamam-se charniqueiros.

P – A bibliografia olissipográfica é rica e variada, mas uma boa parte tem edições esgotadas. A autarquia chegou a patrocinar reedições, mas parece que a chama se esvaneceu. Não seria importante que esta sua obra florescesse junto do público com a possibilidade de ler mais sobre Lisboa, por exemplo sobre os típicos saloios que iam às hortas pelo peixe frito, a salada de alface e umas horas de enleio com a natureza – ali tão perto da baixa?
R – Creio que seria muito mais útil que a autarquia promovesse estudos actuais sobre Lisboa. As pessoas que iam às hortas não eram saloios. Os saloios viviam nos arrabaldes. Os operários, os pequeno-burgueses e outros elementos das classes populares procuravam nas hortas os benefícios do ar livre e do campo que as elites encontravam nas suas quintas. Ir às hortas foi progressivamente substituído pelo ir à praia, quando os benefícios do ar do mar se sobrepuseram ao dos do campo.

P – O que está a escrever agora? E para quando está prevista a próxima obra?
R – Não escrevo sempre livros, pois não sou uma escritora, sou uma investigadora. Este livro, que é o sexto que escrevo, representa uma tentativa de fazer amar a História pelo grande público. De momento estou a escrever intervenções em conferências.
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Magda Pinheiro
Biografia de Lisboa
A Esfera dos Livros, 26€