Luís Pedro Cabral | A Cidade dos Aflitos
1- “A Cidade dos Aflitos” é o seu primeiro romance: como espera poder olhar para ele daqui a 20 anos?
R- Na verdade, não é o primeiro que escrevo, mas, para todos os efeitos, assim é. Confesso que nunca tinha pensado nesses termos. Com a velocidade que têm os dias e as horas do nosso tempo, é quase como uma trilobite a imaginar o século XXI. Chuva no molhado: não sei onde estarei ou se serei daqui a 20 anos. Se não puder ser o meu olhar sobre o livro, gostava que este fosse olhado como se olha para um tomo da História de um flagelo que a Humanidade ultrapassou. Nessa perspectiva (mais um desejo), tenho uma esperança secreta que não o livro, enquanto entidade viva e mutante, mas a sua temática se tenha então tornado obsoleta. Seria uma das maiores conquistas do Homem, não tenhamos dúvida.
2- Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R- Pelo menos no meu caso, a escrita sempre foi uma necessidade. O que me conduziu ao Instituto Português de Oncologia, foi exactamente o que conduz milhares e milhares de pessoas ali, estejam a enfrentar directamente o cancro ou a acompanhar os seus familiares nessa luta. Entre a última vez que tinha acompanhado a “minha mulher” no IPO e esta última, devido a uma recidiva grave de cancro de mama, houve um hiato de quase uma década. E o retorno foi verdadeiramente assustador. Notei que o número de pessoas havia crescido exponencialmente, o que era e é notório, com consequências óbvias (se calhar, naturais, se calhar, políticas) no funcionamento dos serviços, que passou de assoberbado a caótico. Apesar da minha mulher ter mudado de campo de batalha, pois encontra-se desde há quase três anos num ensaio clínico da Fundação Champalimaud, senti necessidade de voltar ao IPO, sem tempo, sem pressas, esperando que as pessoas me procurassem em vez de ser eu a abordá-las, contrariando técnicas e tiques de jornalismo, que ali não faziam para mim o menor sentido. Ninguém consegue lidar de forma fácil com esta doença. Se o disser, está a mentir. Talvez tenha sido a minha forma de terapia, esta de estar com as pessoas. E talvez tenha percebido melhor, mais claramente, uma espécie de isolamento a que cada uma dessas pessoas está submetida. É como uma doença a reboque de outra. Talvez o medo seja o mais Humano dos sentimentos. Acho que é o medo que nos faz encarar os doentes como seres que nos são alheios. É o medo da morte que está na sua génese. É essa a razão do tabu que prolifera ainda na sociedade portuguesa sobre o cancro. A ideia deste livro surgiu quando esta verdade se tornou cristalina. Pensei que tinha de retirar os “doentes” dessa opacidade que os oprime, às vezes quase sem que eles próprios notem, de tão enraizado. Dar corpo e alma às pessoas. Retira-los desse anátema de doentes, para os reposicionar como pessoas. E enfrentar o nosso próprio tabu. Entendi esta cidade como um organismo multicelular, que se comporta exactamente como a doença. O seu quotidiano é de guerra. Uma guerra pela nossa sobrevivência.
3- Viver tão de perto a luta para vencer o cancro que ensinamentos lhe trouxe como pessoa e como escritor?
R- Enriqueceu-me muito como pessoa. E, de certa maneira, também me salvou. Não encaro a luta contra o cancro como uma derrota iminente. Encaro-a como guerra e, por estranho, como paz. Há uma estranha forma de paz, por entre a luta. E talvez seja essa a substância da esperança.
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Luís Pedro Cabral
A Cidade dos Aflitos
Bertrand 15,90€