Luís Miguel Rosa | Nova Arte de Conceitos

1-O que representa, no contexto da sua obra, o livro «Nova
Arte de Conceitos»?
R- Sendo este o meu primeiro livro de ficção em prosa, é prematuro falar dele
no contexto de uma obra ainda por fazer. Posso explicar o que significa para
mim neste ponto concreto da minha vida. Esta publicação alentou-me a respeito
do futuro. Em 2013 comecei a escrever um romance que, quando o terminei em
2015, enviei para várias editoras, recebendo ora recusas ora silêncio. Sem
desânimo, comecei outro livro, este agora publicado, e enviei-o para editoras
aí em princípios de 2016. Mais recusas, mais silêncio. Já andava embrenhado em
pesquisa para o terceiro e o quarto quando Carlos Alberto Machado, da Companhia
das Ilhas, entrou em contacto comigo para publicar Nova Arte de Conceitos. O
apreço dele fortaleceu-me a auto-estima; pensei que afinal não estava a
escrever para o vácuo, que a minha escrita pudesse interessar aos outros. Esta
é uma dúvida que me assombra: o que escrevo interessa a alguém? O processo de
publicação deste livro também me ensinou lições valiosas. Antes de mais,
descobri a importância da paciência. O Carlos respondeu-me em Maio de 2016 e só
em Setembro passado é que o livro saiu, quase um ano e meio depois; e ainda bem
que demorou tanto, porque no entrementes andei a corrigi-lo e a revê-lo várias
vezes, até quase à semana anterior ao livro ir para a prensa. Acabei com um
livro bem melhor do que aquele que enviei para as editoras, e é isso que quero
acima de tudo: criar o melhor livro possível de acordo com as minhas
capacidades. Aprendi que não vale a pena haver pressa em publicar; no meu caso,
pelo menos, isso vai de encontro ao meu objectivo, que é ir ao encontro da
perfeição possível. Descobri ainda a utilidade de escutar um editor. O Carlos
fez-me várias observações e recomendações com o fito de melhorar o livro;
ponderei-as e concordei com algumas delas. Quando escrevo, escrevo só para mim,
fazendo de mim próprio a medida das coisas; quanto a isso sou muito
protagoriano. Depois, claro, fico curioso por saber o que os outros pensarão do
livro. O Carlos apontou-me aspectos que lhe pareceram problemáticos; isso
deu-me oportunidade de os reconsiderar de uma nova perspectiva, e concluí que
em alguns casos tinha razão. Logo fiz certas mudanças que, no seu todo,
tornaram o livro mais bem estruturado, mais elegante, sem com isso lhe trair o
espírito inicial. Foram, portanto, essas as lições que colhi desta experiência:
ter paciência e lidar com críticas construtivas.


2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro de contos?
R- Escrevi-o para ser deleitoso: os contos são eclécticos e cómicos, indo do
realismo à fantasia, da actualidade ao século XII, de Lisboa à Ilha dos Amores,
e lidando com as questões perenes da literatura: amor, poder, ambição,
fracasso. Nada une os ingredientes desta mixórdia salvo o gozo que tive em
manipular a língua portuguesa para lhes dar forma e flama, o que sobressai em
cada linha. O que é  me levou a enveredar
por um livro de contos? Agora envergonho-me de o admitir, mas foi sobretudo
falta de ambição e um certo desdém pelo conto como um género fácil, menor e
despachado. Em 2015, quando terminei o meu primeiro romance, descobri com pavor
que este tinha mais de 310 000 palavras. Os Maias, para efeitos de comparação,
tem cerca de 210 000. Eu era, portanto, um noviço sem nome, sem público, sem
créditos, sem cunhas, pensando mesmo que ia publicar um calhamaço que deverá
dar umas 700 ou 800 páginas num país onde só publicam tais beemotes autores
consagradíssimos como António Lobo Antunes, Maria Teresa Horta e Mário Cláudio.
Pode calcular o quão bem a experiência correu quando o enviei para as editoras.
É um facto que os romances portugueses, de Herculano aos nossos dias, e
sobretudo as obras marcantes da sua história, foram curtos: Viagens na Minha
Terra, Confissão de Lúcio, Húmus, Nome de Guerra, Esteiros
e Gaibéus, Rumor
Branco
, O Delfim, são romances que mal chegam às 200 páginas. Sempre achei isso
curioso, porque em outros países tendem a ser livros longos a iniciar ou a
definir uma época: Gargântua e Pantagruel, Dom Quixote, Tom Jones, Crime e
Castigo, Guerra e Paz, Em Busca do Tempo Perdido, Ulisses, The Recognitons,
Grande Sertão: Veredas, The Sot-Weed Factor, La Saga/Fuga de J.B, Gravity’s
Rainbow
, etc. Não sei o porquê; só sabia na altura que eu era um zé-ninguém com
um livro impublicável perante os padrões há muito vigentes no nosso meio
literário. Assim virei-me para o conto; pensei que dava para despachar uma
mancheia deles em poucos meses. Acreditava que, a um dia publicar este romance,
só o faria depois de ter obra feita e um nome conhecido na praça pública, e
mais valia trabalhar para isso o quanto antes. Conhece aquela citação de Lobo
Antunes? “A mim enviam-me muitos manuscritos para que dê a minha opinião, e
fico surpreendido porque estes jovens querem ser lidos na segunda-feira, ser
publicados na terça, ter um êxito extraordinário na quarta e ser traduzidos em
todo o mundo na quinta. Não são escritores porque têm um apetite de êxito
imediato e essa atitude impede-os de crescer literariamente.” Eu fui esse
cretino. Foi por isso que iniciei Nova Arte de Conceitos por volta de Maio de
2015 e aí em Janeiro de 2016 já o andava a prostituir junto das editoras. De
início concebi o livro em parte como uma obra mais curta e menos assustadora
para um editor. Felizmente, o Carlos disse-me que não o podia publicar de
imediato, presumo que por causa de outros compromissos e as dificuldades
inerentes a gerir uma pequena editora; e isso foi um bálsamo, porque aproveitei
essa demora para acrisolar o livro. Aliás, quando ele me contactou eu já estava
a meio de um novo rascunho. A verdade é que, embora eu tenha um certo desejo de
ser acessível, a minha mente revolta-se contra mim se eu insisto nisso por
muito tempo. A minha estética pende para o excesso, o exagero, a extravagância.
Quando mostrei uns capítulos do meu romance a conhecidos, vários me disseram
que eu era barroco. Como a palavra “barroco” suscitava associações muito vagas
na minha mente, pus-me a estudar o nosso século XVII e os seus escritores para
ver o que podia extrair deles que enriquecesse o meu próprio processo. Quando
li Corte na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo, encontrei a estrutura que me
faltava ao livro. Há um capítulo maravilhoso em Corte na Aldeia onde os
personagens discutem retórica, ou melhor, condenam a retórica barroca, e o que
condenam é exactamente aquilo que eu já realizara em alguns contos. Então
decidi usar citações como epígrafes de cada conto, num jogo de ponto e
contraponto. Se ele condena o uso de arcaísmos, então dou-lhe um conto cheio de
palavras desusadas; se condena o uso de estrangeirismos, então dou-lhe um conto
cheio de brasileirismos, especialmente derivados do Tupi. E quando ele se
queixa dos “mancebos” que fazem “na prosa acentos de música ou medidas de
poesia,” tive por bem dar-lhe um conto todo escrito em prosa rimada.
Recentemente tive a maravilha de descobrir que D. Francisco Manuel de Melo se
antecipara a muitos dos meus jogos numa obra-prima negligenciada intitulada A
Feira dos Anexins. Rodrigues Lobo, por quem tenho muita estima, deu-me um
inimigo em quem eu me pudesse focar; o meu livro foi de ser um mero aglomerado
de contos a ter uma coerência interna de capa a capa graças a ele. Também gosto
de pensar que é uma espécie de homenagem ao Barroco português, sempre tão
desprezado e incompreendido entre nós. O título do livro vem de um tratado de
retórica do século XVIII de Francisco Leitão Ferreira, o qual não é reeditado
desde 1722. Por incrível sincronicidade, dias depois do lançamento do meu livro
descobri que o Nova Arte de Conceitos de Leitão Ferreira vai ser finalmente
reeditado na colecção “Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa” da Círculo de
Leitores. Apraz-me saber que em breve, quando o quiser folhear, não terei de ir
à sala de microfilmes da Biblioteca Nacional. Dá-me esperança que um dia até A
Feira dos Anexins
esteja ao alcance de todos e não apenas de ratos de
alfarrabistas como eu. De certo modo, Nova Arte de Conceitos, nascido sob a
égide da simplicidade e da preguiça, acabou por me exigir tanto quanto o
romance, e se calhar tornou-se um livro mais desafiante do que este.


3- Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R- Fora da ficção, ando a ver se encontro casa para uma tradução do romance de
um escritor americano que adoro: Three Wogs, de Alexander Theroux. Ademais,
entretenho-me amiúde com ensaios literários. Mas a ficção fascina-me mais do
que o resto. Quanto a ela, bem, antes de Nova Arte de Conceitos já contemplava
um segundo romance; este seria do género histórico, passado no século XVII;
começaria em Portugal e acabaria no Brasil, como as vidas de tantas pessoas
desse século. Contudo, à medida que a pesquisa foi crescendo, percebi que este
seria ainda mais longo e exigente do que o primeiro. Ademais, seria igualmente
impublicável, e não vejo utilidade em ter dois livros impublicáveis terminados
a acumular cotão digital num disco externo. Assim, vou trabalhando nele com
vagar. De momento, ando mais ocupado com dois projectos em simultâneo: um é uma
obra nascida do meu desejo de ir sempre além do que julgo ser capaz de
realizar; é um livrito lipogramático de 100 páginas, cada página com um texto
de 100 palavras, pelo que o livro terá 10 000 palavras. O desafio reside no
facto de só usar palavras com a vogal A. Isto é mais claro se lhe mostrar um
excerto: “Nata há nada, a malva Sandra, avalancha salgada, a aflar abalada,
para a saga avança da racha nas ancas da mamã. Mamã ama-a. Mas, da mamã, zás,
apartada. Vá lá, laça ar, lança ar! Batam nas nalgas! Zás-catrás! Ah, já brada,
já arfa. Cá tás, cansada vassala da campa: nada dá para travar a valsa astral.
Rapas cabalas, alastram as cãs, passa a chama, passas a pasta para anafar
grama, dás a casca à Dama-da-Gadanha, a alma, às tantas, lá acampa na campa.
Tragam dâmaras, sâmaras, tâmaras, câmaras pra captar a data! Papá, abra a
garrafa da champanha. Papá ama-a.”
A versão final será, decerto, diferente. Imaginei
o projecto há anos, mas depois de tentativas sob a forma de poesia, aceitei que
sou essencialmente um escritor de prosa narrativa. Além disso, percebi que num
estágio anterior à escritura teria de fazer um levantamento lexical exaustivo,
o que comecei a fazer há 2 anos e já vou para aí numas 2500 palavras. Agora,
com lenteza, vou tentando extrair desse opressivo constrangimento clareza,
enredo, sentido, personagens, humor, tragédia e acima de tudo beleza. É
terrível: posso passar um dia inteiro à volta dum texto de 100 palavras. Mas
quando corre bem, sinto-me feliz e justificado. Basicamente, isto é uma
continuação dos constrangimentos que impus a mim próprio em Nova Arte de
Conceitos
; só que em vez de estar a escrever um conto inteiro cheio de
neologismos, outro cheio de arcaísmos, outro de frases aliterantes, etc.,
decidi experimentar um lipograma. Era o próximo passo lógico. O outro projecto
é mais normal, por assim dizer: é uma trilogia de novelas interligadas pelo
tema da intolerância e do fanatismo ao longo da nossa história. Começo,
portanto, no meu amado século XVII com um inquisidor, depois salto para a I
República e acabo nos dias actuais com um terrorista islâmico. A escritura
deste desenrola-se mais depressa, e é o que me tem consumido mais atenção.
Também ajuda o facto de ser divertidíssimo ter um inquisidor a viver na minha
cabeça há meses; o tipo é tão irresistível que não lhe consigo dizer não. O
lipograma deixa-me exausto se trabalho nele durante mais do que 2 dias
seguidos, e por isso uso este outro para recarregar as baterias antes de nova
investida. É uma estafa, mas quem existe não desiste.
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Luís Miguel Rosa
Nova Arte de Conceitos
Companhia das Ilhas  14€