Livrarias: o objecto como fio condutor

CRÓNICA
| agostinho sousa

O título abre as portas de muitas das livrarias que o autor visitou, misturando livros, espaços (dos  mais reduzidas aos grandes armazéns), as suas histórias, locais, episódios, escritores e livreiros (“porque um bom livreiro tem qualquer coisa de médico, de farmacêutico ou de psicólogo. Ou de barman.”) e demais pessoas que vivem da e/ou para a leitura.
Tendo o objeto «livro» como fio condutor, o autor, tomando na sua experiência de viajante insaciável e estudioso, apoia-se no seu conhecimento e vivência de inúmeras livrarias, tanto as mais conhecidas, importantes e famosas, com aprofundamento em pesquisas históricas (tem um capítulo reservado para as mais antigas do mundo), situadas tanto nas grandes cidades como em lugares menos conhecidos, que podem ser as tradicionais de venda exclusiva de livros como as que misturam estes com outros artigos nos seus expositores, bem como espaços ampliados por cafetarias e restaurantes onde a leitura se associa a outras vivências.
Destaquemos, do vasto catálogo de exemplos, as três livrarias apresentadas do território nacional: a Bertrand, por ser considerada a mais antiga do mundo em atividade; a Lello, pela grandiosidade e beleza espacial interior (que Vila Matas qualificou “como a mais bela do mundo”); e a Ler Devagar, pela sua singularidade de estar localizada num antigo meio industrial desativado onde gravitam atividades artísticas e por ser “a livraria com mais livros em Portugal, [resultante de] uma sociedade anónima de 140 sócios que não recebem lucros devidos pelo seu investimento inicial para os aplicar a fundo quase perdido em livros.”
Há nomes de livrarias curiosos como a Traça-dos-livros em Pequim, ou a Alameda do Livro em Xangai, onde o autor teve prazer em “folhear a tradução chinesa do Dom Quixote” apesar de não compreender nada da escrita chinesa. Porque o livro não permite apenas o prazer da leitura, é também um objeto de desejo, de mistério e de posse.
As suas viagens gravitam por livrarias maioritariamente ordenadas, mas também há as anárquicas como La Gran Pulperia del Libroem Caracas que mais se assemelha ao espaço do tradicional alfarrabista “onde reina o caos”, mas que não deixa de ser basta na oferta. Mas em todas elas há algo de mágico, de enigmático que atrai, como diz o autor, “viajamos para descobrir mas também para reconhecer. Só o equilíbrio entre essas duas ações nos proporciona o prazer que procuramos nas viagens.” E são inúmeras as relatadas pelo autor, entre culturas e locais tão diversos, que enriquecem e aliciam a vontade de ir ao encontro de muitas delas.
Quando finalmente, no meu último dia em Santiago, visitei a Ulisses, esse lugar repleto de livros cujos espelhos abismais refletem estantes e os volumes até ao infinito, sobrevoando-nos e multiplicando-nos num maravilhoso teto de espelhos, talvez por me encontrar numa das livrarias mais belas e borgesianas do mundo, o quarto vértice de um quadrado invisível, pensei que as outras três, a Libros Prólogo, a Metales Pesados e a Lolita materializavam os três tempos de qualquer livraria: o passado do arquivo, o presente do trânsito, o futuro das comunidades unidas pelo desejo. Que, todas juntas, configuravam a livraria perfeita, a livraria que levaria para uma ilha deserta.” Só uma amante do livro se lembraria de levar uma livraria para uma ilha deserta.
A livraria também se apresenta como atração turística mais superficial, como no caso da primeira Shakespeare and Company, em Paris, que “fazia parte do circuito American Express, [onde] autocarros carregados de turistas paravam uns minutos na Rue de l’Odeón para que tirassem fotografias do lugar onde Joyce publicou o elogiado romance, frequentado por Hemingway e pelo glamoroso casal Fitzgerald.
Entre os muitos episódios relatados, há felizes acasos como quando, “entre livros de segunda mão da Delamain de Paris, François Truffaut encontrou um romance de Henri-Pierre Roché intitulado Jules e Jim”; ou quando Akira Kurosawa não conseguiu comprar um livro à irmã por a livraria Maruzen de Tóquio estar fechada e duas horas depois de ele se ir embora, “o edifício foi destruído por um terremoto e todo o bairro foi consumido pelas chamas”.
Claro que também há episódios menos afortunados para as livrarias como quando “durante os primeiros meses de 2001, vi uma livraria, quase centenária, a ser transformada num McDonalds.”
Por fim aborda a relação entre a Web e as livrarias, e o futuro do livro, enquanto objeto físico e palpável, transfigurado no imaterial. Nessa abordagem não esquece que a atividade livreira gravita em torno do negócio e é “por isso que as livrarias têm páginas Web: para nos venderem livros pixelizados e para que consumamos também imagens, relatos, novidades, iscos. Tudo isto é substancial, não um mero acidente: os nossos cérebros estão em processo de mutação, as nossas formas de comunicação e de nos relacionarmos uns com os outros estão a mudar, somos os mesmos, mas muito diferentes. Como explica [Alessandro] Baricco, nas últimas décadas mudou o que entendemos por experiência e, inclusivamente, o tecido da nossa existência. As consequências desta mutação são as seguintes: «A superfície em vez da profundidade, a velocidade em vez da reflexão, as sequências em vez das análises, o surf em vez do aprofundamento. A comunicação em vez da expressão, o multitasking em vez da especialização, o prazer em vez do esforço.»”
Um belo livro sobre livrarias, aliciante para quem gosta de livros, na descoberta de novos roteiros em futuras viagens.

Espinho, 22 de julho de 20

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Jorge Carrión
Livrarias
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