Kuznetsov e o absurdo da censura

CRÓNICA
| agostinho sousa

Eis um livro que vive de muitas histórias: é um retrato vivencial (e verdadeiro segundo o autor) de um rapaz que, com catorze anos, assistiu à chegada dos nazis a Kiev, então na União Soviética, durante a Segunda Guerra Mundial, onde vivia com a sua família. Mas esse relato vai mais longe e recua alguns anos quando, sob regime soviético, os ucranianos passaram pela denominada Holodomor e pelas purgas Estalinistas que “«culminaram no Grande Terror [que…] levou à prisão de 19,8 milhões de pessoas e muitos à morte, entre 1935 e 1941, em toda a União Soviética», como é referido na Introdução de Irene Flunser Pimentel.
Bábi Iar, às portas da capital ucraniana – onde se estima que foram assassinadas mais de 100.000 pessoas -, vai ser palco não só das maiores atrocidades nazis como também será mantida, deliberadamente, em segredo por este e pelo regime soviético (mesmo após a Guerra). A propósito de números atrozes: “um em cada três habitantes de Kiev morreu durante a ocupação alemã.”
Bábi Iar vai testemunhar esse extermínio em massa, sofrendo um conjunto considerável de transformações físicas do seu território e destinos vários ao longo do tempo, numa tentativa de ocultação do que por lá se passou. As primeiras referências públicas a esse acontecimento surgem num poema de Evguéni Evtuchenkpo, iniciado com a estrofe “«não há monumentos sobre Bábi Iar»”, ao qual se juntou Chostakovskich com a respetiva dedicatória da sua Sinfonia n.º 13. Depois de 1976 começam a surgir sinais de maior abertura quanto à necessidade de aí constarem memoriais sobre o sucedido, com a versão final de um museu, planeado para ser inaugurado em 2025/26, entretanto goradas com a invasão russa.
A primeira tentativa do autor para editar o livro na antiga União Soviética foi em 1961 e teve de ser «numa versão fortemente truncada» para poder ser publicada em 1966. Três anos depois o autor foge para Inglaterra, conseguindo por à estampa o texto integral em 1970, pela posse das fotografias que fez das partes censuradas.
O próprio autor é o reflexo de um território com forte influência das duas culturas: ucraniana e a russa, designadamente pela filiação da mãe e do pai. O seu testemunho ajuda à compreensão de razões culturais e históricas motivadoras de tanta desconfiança mútua entre os povos em questão.
Este livro tem também a particularidade de permitir distinguir o que foi publicado em 1966, sob a censura, e a versão integral de 1970. É incrível verificar até onde foram os critérios censórios dos soviéticos para ocultar: a localização de Bábi Iar; origem e quantidades das pessoas envolvidas; meros conluios que poderiam por em dúvida o «nacionalismo» soviético; as efetivas vantagens obtidas pelas pessoas mais próximas deste regime; etc. É, sem dúvida, uma narrativa histórica que nos ajuda a compreender as vicissitudes que a guerra e a pré-guerra impuseram àquelas populações, com feridas que não cicatrizaram e foram recentemente avivadas.
Eis um exemplo, entre inúmeros, do absurdo a que a censura soviética chegou:

“Quão afortunadas são as aves migratórias que conseguem levantar voo e voar para onde desejam sem qualquer autorização especial.”

Mas há histórias incríveis de sobrevivência e final feliz, dignas da ficção mais criativa, quiçá inacreditável, muitas das quais o autor acabou por testemunhar em encontros, nos anos posteriores a esse flagelo, com alguns dos sobreviventes.
Tem passagens muito tristes, como murros secos no estômago, que não deixam o leitor indiferente apesar de já ter decorrido tanto tempo, mas também algumas de esperança e alegria – basta pensar nas vicissitudes pelas quais passou o autor – sobrevivendo – para escrever este livro.
Depois de o ler, entre tantos testemunhos e histórias possíveis de serem transcritas, socorro-me destes excertos:

“De facto, com a expansão da campanha antissemita de inspiração governamental de 1948 até 1953, a questão da construção de um memorial caiu. Depois da morte de Estaline as pessoas voltaram a referir cautelosamente que Bábi iar não era somente um túmulo judeu e que havia lá três ou quatro vezes mais pessoas russas e de outras nacionalidades. Argumentos como este sempre me pareceram bastante ridículos: será que queriam dizer que só se a proporção de não-judeus atingisse um determinado volume é que seria legítimo construir um memorial? Como se poderia pensar deste modo, em percentagens? São pessoas quem está enterrado em Bábi Iar.” [esta passagem foi censurada na edição de 1969]

“É assombrosa a adaptabilidade do homem.”

E destaco a forma como o autor se despede do leitor nas duas últimas frases, que poderiam ser dedicadas hoje ao povo ucraniano:

“Com estas palavras chego ao fim do livro.
Desejo-vos paz. E liberdade.”
Espinho, 20/05/2023
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Anatóli Kuznetsov
Bábi Iar
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