Jurek Becker: Um livro comovente
CRÓNICA
| agostinho sousa
Há encontros curiosos: um livro de um autor, meu desconhecido, é-me confiado por mão amiga sem que ela, sequer, o tivesse lido. Essa atitude motivou a curiosidade de passar os olhos pela primeira página:
“Já ouço todos dizer: uma árvore? O que é uma árvore? Um tronco, folhas, raízes, joaninhas na casca e uma copa frondosa, quando muito… Sim, e daí? Ouço-os dizer: não consegues pensar em nada melhor, que faça com que os teus olhos se iluminem como os olhos de uma cabra faminta ao ver um grande tufo de erva viçosa? Ou será que te referes a uma árvore em especial, uma muito específica, uma árvore que, sei lá! Que talvez tenha dado o nome a uma batalha, por exemplo, a Batalha do Pinheiro; queres dizer uma árvore assim? Ou uma onde alguém especial foi enforcado? Não? Nem sequer isso? Está bem, não tem graça nenhuma, mas se te dá assim tanto prazer, vamos continuar a jogar mais um pouco este jogo ridículo. Como queiras. Será que queres dizer o som suave a que as pessoas chamam farfalhar, quando o vento descobre uma árvore e improvisas uma melodia nas folhas? Ou a quantidade de metros úteis de madeira que um tronco assim pode dar? Ou será que queres dizer a famosa sombra, pensa-se logo em árvores, embora os edifícios e os altos-fornos projectem sombras muito maiores. Queres dizer a sombra? […]»
E, a partir daqui, segui, deixando outros livros que, supostamente, estariam melhor posicionados na lista de espera.
O relato sobre as árvores prossegue e estas servem para o narrador se apresentar naquela história que, aparentemente, nada tem a ver com árvores. A queda de uma impedi-lo-á de ser violinista; o seu primeiro amor foi sob a copa de outra; e a sua mulher foi fuzilada debaixo de uma. E, subitamente, as árvores desaparecem daquela narrativa por serem expressamente proibidas, por regulamento, no local onde tudo se passa: o gueto judeu de Łódź, na Polónia, em plena Segunda Guerra.
Jakob é judeu e o personagem principal, de uma «história maldita», que começa com a descrição de algo que escutou e irá contar a outra pessoa. A partir daí surge um boato que se vai transformando em realidade, acreditada pelos vizinhos. O crescente protagonismo de Jakob ajudará na evolução dessa mentira que só ele conhece, aprofunda e reinventa. Mas trata-se de uma mentira bondosa, capaz de reavivar a esperança de quem já está praticamente perdido.
Por fim, a mentira abrange todo o gueto e o protagonista acaba por sentir-se seu prisioneiro, não conseguindo desmascara-la, num crescendo que lhe vai permitir ganhar prestígio na comunidade.
O autor, nascido em Łódź, em 1937, foi deportado em dois campos de concentração de que sobreviveu, habitando os dois lados, Oriental e Ocidental, da cidade de Berlim, onde morre em 1997. A sua escrita é concisa e de uma fina ironia, capaz de refrescar episódios, por vezes, tão dramáticos, próprios do retrato de uma comunidade marginalizada e maltratada, de pessoas rebaixadas à pior condição desumana; como quando alguém desabafa de que gostaria de se transformar num rato para poder esgueirar-se depois do recolher obrigatório, às 20 horas, sem ser apanhado pelas sentinelas: «É preciso ser-se um rato. Um rato é tão discreto, tão pequeno, tão silencioso. E tu? Segundo o regulamento és um piolho, és um piolho, um percevejo, somos todos percevejos, por capricho do Criador, percevejos ridiculamente grandes, e onde já se viu um percevejo querer trocar de lugar com um rato?»
Entreabrir aqui um pouco mais essa «maldita história» seria retirar o privilégio de cada leitor descobrir, ao longo da narrativa, como uma mentira benigna pode evoluir e ser sinónimo de renascimento para os habitantes do gueto.
Por fim, a sombra das árvores regressa, metáfora de uma luz ao fundo do túnel, na esperança de travar o caminho para o extermínio.
Um livro comovente que prende e encanta.
Espinho, 05/10/2022
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Jurek Becker
Jakob, o mentiroso
Guerra & Paz