Julian Barnes faz um interessante retrato de uma época muito peculiar

CRÓNICA
| agostinho sousa

Um quadro de Singer Sargent sobre Samuel Pozzi é a referência para o título do livro que narra a vida deste iminente médico parisiense, precursor da ginecologia moderna, e que serve de mote para uma abordagem mais alargada da Belle Époque. «A Belle Époque: locus classicus de paz e prazer, charme com mais do que uma pincelada de decadência, um último florescimento das artes, e o último florescimento de uma alta sociedade instalada antes de, tardiamente, esta suave fantasia ser varrida pelo metálico e sem graça século XX…»
O Dr. Pozzi é apresentado como uma figura central na forte relação que estabelece com muitos ilustres escritores, artistas, aristocratas e políticos da época, com abordagens sobre as características vivenciais e os costumes que iriam ser profundamente transformados com a primeira Grande Guerra.
Um dos pontos fortes deste livro assenta na mescla dessas inúmeras personagens que tanto se movem paralelamente como se entrecruzam com o Homem do Casaco Vermelho: Conde Robert Montesquiou, Sarah Bernhard (que viajava com um chimpanzé chamado Darwin), Oscar Wilde, Marcel Proust, Mallarmé, Guy de Maupassant, Baudelaire, Nadar, Flaubert, George Sand, Degas, Gustave Moreau, Odion Redon, Zola, Rodin, entre tantos outros, porque «Pozzi estava em todo o lado».
A teia que envolve este médico é densa e retrata uma época de exageros e libertinagem, onde sobressaem a aceitação da homossexualidade (camuflada entre as elites), do enquadrado adultério (entre famílias de bem), a figura excecional do dandy e a importância dada à dignidade masculina tantas vezes limpa através do duelo. Alguns destes duelos com características muito peculiares, como por exemplo: «Lucien foi a causa do mais improvável duelo da Belle Époque, que ocorreu em fevereiro de 1897, entre Proust e Jean Lorrain. Sob o conhecido pseudónimo de Raitif de la Bretonne, Lorrain fez a recensão de Os prazeres e os Dias, de Proust, em Le Journal, insinuando no texto que havia uma relação homossexual entre Lucien e Marcel. Proust desafiou-o e, três dias depois da publicação do artigo, encontraram-se no Bois de Meudon numa tarde chuvosa e fria. Vinte e seis anos antes, quando Marcel ainda estava no ventre da mãe, o pai tinha escapado a uma bala perdida; agora era a vez de Marcel escapar. Foram trocados tiros de pistola a uma distância de vinte e cinco metros e, ao que parece, ambos os homens dispararam para o ar.»
Quanto a Pozzi, é um inovador no campo da medicina, com particularidade na ginecologia, sendo o seu tratado sobre esta disciplina um êxito à época, tendo sido traduzido em várias línguas. Homem culto, muito viajado, grande colecionador de obras de arte e que, curiosamente, foi um dos primeiros defensores de melhores condições de higiene quer nos hospitais como durante a prática das cirurgias. A título de exemplo o “cirurgião americano Charles Meigs (1792/1869) ficou famoso por se ter sentido ultrajado quando alguém lhe sugeriu que ele e os colegas deviam lavar as mãos antes de operar. «Os médicos são cavalheiros e as mãos de cavalheiros estão limpas», declarou.”
A vida do Dr. Pozzi é também retrato da sua riqueza, fama e figura central social e culturalmente. Casado e com dois filhos, com destaque para a filha por esta ter mantido um diário que será uma das muitas fontes do autor, ele manterá relações extramatrimoniais mais ou menos consentidas e conhecidas por todos.
«A Belle Époque foi um tempo de larga riqueza para os ricos, de poder social para a aristocracia, de snobismo intrincado e descontrolado, de ambição colonial impetuosa, de mecenato artístico e de duelos cuja escala de violência refletiu muitas vezes mais a irascibilidade pessoal que a honra ofendida. Não houve muito a dizer a propósito da Primeira Guerra Mundial, mas pelo menos varreu muito disto.»
Após a morte deste Homem do Casaco Vermelho todos os seus tesouros acabarão por ser leiloados à exceção de um… quadro.
Um livro muito interessante que retrata vivamente uma época muito peculiar, complementado por um conjunto de imagens de quadros de alguns dos intervenientes no enredo.
Espinho, 22 de janeiro de 2022
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Julian Barnes
O Homem do Casaco Vermelho
Quetzal  18,80€

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