J.-M. Nobre-Correia: “Todos os média tradicionais estão em profunda convulsão”
P-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro “História dos Média na Europa”?
R-Durante longos anos, fui professor titular de uma cadeira de História dos Média na Europa e de outra de Socio-economia dos Média na Europa na Université Libre de Bruxelles. Cadeiras para as quais eu tinha redigido os respetivos manuais, tendo o primeiro tido 12 edições e o segundo 11. De regresso a Portugal, após mais de 45 anos de vida no estrangeiro, a impressão que eu tinha foi reforçada: não havia nenhuma história global da imprensa, da rádio e da televisão em Portugal; e não havia também nenhuma história nesta matéria que tratasse a especificidade portuguesa em relação com outros países da chamada Europa Ocidental. Pelo que, partindo dos meus dois manuais em francês, procedi à tradução, adaptação e atualização dos conteúdos, abordando a história em Portugal, praticamente inexistente nestas edições em francês.
P-Olhando para esta história de vários séculos, quais os traços que são mais significativos e distintivos no perfil dos meios de comunicação da Europa?
R-Digamos que há três particularidades que explicam as especificidades dos média na Europa : a clivagem entre a Europa protestante (onde se operou muito cedo uma alfabetização por vezes total da população, de modo a que a Bíblia e os textos sagrados pudessem ser lidos pelos fiéis) e a Europa católica (onde a alfabetização foi extremamente tardia, a leitura de tais documentos sendo praticamente reservada ao clero); a velha ou a relativamente recente unificação do Estado e, paralelamente a centralização ou a real descentralização do Estado; a democratização mais ou menos arreigada da vida política, assim como a realidade mais ou menos concreta da liberdade de informar de que os média puderam de facto gozar.
P-E quanto a Portugal: qual o seu papel e qual a sua importância?
R-A resposta à pergunta anterior deixa antever o que poderá ter sido o caso português: país dominado culturalmente pela Igreja Católica; antiquíssimo Estado unificado e ultracentralizado; e sociedade democrática recente, após longos períodos de repressão e de censura desde que a imprensa, no século XIX, progressivamente se industrializou e passou a procurar atingir um leitorado mais vasto. Pelo que, em termos europeus, a paisagem mediática portuguesa é extremamente deficiente em termos de diversidade, de pluralismo e de qualidade, em imprensa diária como em imprensa periódica, em rádio como em televisão.
P-Pensando nas últimas duas ou três décadas assistimos a uma cada vez maior uniformização de muitas facetas das nossas vidas. No entanto, no que diz respeito aos média, podemos dizer que também se tem caminhado no sentido de uma globalização de formatos e modelos de negócio?
R-Sim e não! É evidente que certos tipos de média foram-se generalizando pela Europa fora: os newsmagazine, as rádios de informação ou de tipos específicos de música, as televisões de informação, de cinema, de música, de desporto ou para crianças… Da mesma maneira, o acesso por assinatura a certos tipos de estações de televisão, por exemplo, passou a ser bastante generalizado. Mas, em muitos casos, as especificidades de um país, de uma região ou de uma zona linguística permanecem em maior ou menos grau, quer no que diz respeito aos conteúdos e às formas de tratamento destes conteúdos, como aos centros de interesse dos média, quer até porque as formas de acesso à imprensa, à rádio ou à televisão são diferentes, nomeadamente por razões de natureza técnica.
P-As principais mudanças são, normalmente, associadas ao aparecimento da Internet: concorda que esse é o factor que mais condiciona e influencia o panorama mediático europeu?
R-Antes da internet, aparecida em meados dos anos 1990 em termos de grande público, houve a desmonopolização dos sectores da rádio e da televisão, sobretudo a partir dos anos 1970, e antes houve também a passagem da imprensa à fotocomposição e ao offset, sobretudo nos anos 1960. Três momentos com as suas novidades tecnológicas que modificaram profundamente as paisagens mediáticas nacionais e internacionais, provocando uma proliferação de média, de posicionamentos editoriais diferentes e de conteúdos diferentes. Mas é claro que a digitação e a internet provocaram uma revolução que afetou todos os domínios da produção, da distribuição e da comercialização mediáticas. A internet fez sobretudo que a informação em tempo real e a difusão à escala planetária, que já eram possíveis graças aos satélites geoestacionários, fossem acentuadas e generalizadas. Enquanto a proliferação de média provocou uma fragmentação das receitas publicitárias, a que veio juntar-se a forte erosão das receitas publicitárias dos média tradicionais, fragilizando-os, a internet passando a ser o principal veículo das inserções publicitárias.
P-Existe um persistente declínio dos meios de comunicação não digitais, designadamente jornais e revistas em papel: o seu desaparecimento estará para breve?
R-Em matéria de imprensa, a digitalização e a internet modificaram sobretudo as condições de produção, de distribuição e de receção dos jornais e dos magazines. Para o leitor de imprensa escrita o que mudou foi a receção deles. Deixou de ter de esperar que estas publicações cheguem até à localidade onde reside, de ter de ir até uma loja de jornais comprá-las ou, se for assinante, de esperar que o carteiro lhas ponha na caixa do correio. Com o que estas diferentes etapas significavam antes como perda de frescura do conteúdo por parte de publicações impressas horas ou mesmo dias antes. A publicação chega agora no mesmo instante em que é posta em linha pelo seu editor e é recebida onde quer que nos encontremos, sem termos que nos deslocar para a procurar. Quanto ao “desaparecimento”: quando as publicações periódicas passaram a ser numerosas e com periodicidades cada vez mais próximas, houve quem pensasse que o livro iria desaparecer. Houve quem pensasse o mesmo da imprensa quando a rádio tomou importância: já não era preciso ir procurá-la, comprá-la e saber ler. E o mesmo aconteceu com a rádio quando a televisão surgiu, dadas as imagens que ela acrescentava ao som (“a televisão é a rádio com imagens”, diziam eles). Ora todos estes média sobreviveram com as suas especificidades, embora os suportes, os canais de difusão fossem mudando: das ondas hertzianas para as redes de cabo ou os satélites, por exemplo. Hoje o grande veículo de distribuição de todos os média tradicionais é a internet. E, por toda a parte, os grandes jornais diários, sobretudo os diários de referência, por exemplo, têm-se mantido e mesmo alargado consideravelmente o número de leitores graças nomeadamente às versões digitais das edições impressas.
P-Curiosamente o anunciado fim dos livros tradicionais e a sua substituição pelos ebooks ainda não se concretizou. Terão os livros mais força no mercado do que jornais e revistas?
R-Como eu disse na resposta anterior. A relação física e mesmo afetiva do leitor com cada um destes suportes não é a mesma. Por outro lado, será preciso lembrar que o livro não foi sempre composto e impresso da mesma maneira, utilizando o mesmo tipo de materiais, de máquinas, de energias e de suportes?
P-E sobre a televisão? Parece ser um meio também em profunda convulsão e transformação mas com menor discussão no espaço público. A que se deve esta situação?
R-Todos os média tradicionais estão “em profunda convulsão”. A “discussão no espaço público” é menor porque, ao contrário do que acontece com a imprensa, os espectadores percebem menos a diferença com o que se passa, à parte o facto de que agora têm acesso a muitas mais estações e que, mudança fundamental, agora podem ver ou rever emissões programadas antes. É sobretudo entre os jovens que o acesso à televisão passou a ser feito por computadores, telemóveis ou tabletes, e não pelo tradicional televisor, o que lhes permite autonomizarem-se em relação aos televisores utilizados pela família e assim autonomizarem o seu consumo individual de emissões.
P-Finalmente, olhando para a rádio: é o meio que constantemente se reinventa e consegue sobreviver. A que se deve esta resiliência?
R-A grande especificidade da rádio é a de não exigir a atenção exclusiva ou quase exclusiva do consumidor, excludente de outra atividade. A escuta da rádio permite toda a espécie de ocupações, da toilette matinal, às ocupações profissionais, ao cozinhar, tomar uma refeição, trabalhar, ler, deslocar-se… E do radiodespertador ao autorrádio, as emissões de rádios podem acompanhar-nos por todo o lado, mesmo no espaço público ou nos transportes públicos graças a auriculares.
P-Sobre as tendências que se pode analisar: além dos podcasts, do seu ponto de vista, que novos meios se afirmarão no espaço mediático?
R-Não sou futurólogo! Mas o que me parece por demais evidente é que as tecnologias de produção e de veiculação da informação e do entretenimento serão cada vez mais diversificadas e ligeiras, permitindo a multiplicação dos emissores, a diversificação dos conteúdos e uma fragmentação das receções, tornando cada vez mais difícil a comunicação em sociedade, a vida em comum. Qualquer recetor pode doravante ser igualmente emissor, a emissão como a receção operando-se agora em tempo real e à escala planetária, de uma ponta à outra do mundo, onde haja recetores interessados pela emissão.
P-Pensando no futuro dos média em Portugal. Qual a sua visão para os próximos anos?
R-Mais uma vez: não sou futurólogo! Mas do que eu estou convencido é que, se os poderes legislativo e executivo não decidirem enfrentar a situação de miséria dos média em matéria de informação como de entretenimento, a democracia portuguesa não resistirá muito tempo a esta mediocridade generalizada e a esta confrangedora ausência de pluralismo, ficando entregue à mercê de potentados sem escrúpulos, pouco preocupados com o Estado de direito, a liberdade e os direitos dos cidadãos.
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J.-M. Nobre-Correia
A História dos Média na Europa
Almedina 29,90€
J.-M. Nobre-Correia na Novos Livros | Entrevistas