José Carlos Barros: “Eu nasci num mundo mágico”

José Carlos Barros acaba de ganhar o Prémio Leya 2021 com o seu romance mais recente e a editar em breve. Nascido em Boticas, em 1963, é autor de nove livros de poesia e de dois romances. Pausa para uma conversa com o nosso cronista Rui Miguel Rocha.
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P-Olá José Carlos Barros, esta entrevista era para ser a propósito do lançamento do Penélope Escreve a Ulisses, o teu último livro de poesia, mas entretanto veio o Prémio Leya. Portanto falemos do prémio.
R-Os meus três livros mais recentes, todos de poesia, foram apanhados pela pandemia. Não me agrada nada a ideia de que agora podem desaparecer de vez por causa deste prémio… Em Julho de 2020, a editora Do Lado Esquerdo publicou A Educação das Crianças. Uns meses depois, em Outubro, a On y va, num trabalho inestimável de edição, lançaria um livrinho, Estação, com os meus poemas de adolescência e juventude, publicados no DN-Jovem (suplemento do Diário de Notícias) entre 1984 e 1989. E, mais recentemente, em Novembro do ano passado, e também num precioso trabalho editorial, a Caixa Alta lançou Penélope Escreve a Ulisses, um livro composto com poemas dactilografados, tal como os bati na minha Olivetti Lettera 32, em teclado HCESAR. Por causa da pandemia, estes livros não tiveram apresentações públicas, não foram objecto de lançamentos formais, não andaram em sessões nas livrarias. Não me apetecia nada que o prémio fosse, para a minha poesia mais recente, uma espécie de nova vaga pandémica com a variante do apagamento… Quanto ao Prémio Leya, quase tinha vergonha de dizer aos meus amigos que tinha concorrido. Porque achava um bocadinho de presunção a ideia de que o podia vencer. Ainda por cima, esta edição juntava os romances de dois anos a concurso. Parece que mais de 700… Ou seja: as probabilidades estavam todas contra cada um dos autores que concorria… Enfim, no fundo acreditava que era possível vencer e, simultaneamente, pensava que estava um bocadinho doido ao acreditar que era possível vencer…

P-Voltaremos aos três livros de poesia. Fala-me deste livro, do que ganhou aos outros 699.
R-No livro contam-se histórias de vários tempos e lugares: a raia trasmontana durante a Guerra Civil de Espanha, o volfrâmio e a Segunda Guerra Mundial, a revisão constitucional de 1951, as reuniões no gabinete de Salazar, as eleições presidenciais de 1980… Mas é, também, a memória de um dos episódios negros da nossa História colonial, o chamado massacre de Batepá. Tudo isto entre realismo e magia, entre a ideia de Poder e de invisibilidade…

P-É a história dos que não puderam contar a história, daí os invisíveis ?
R-Sim, os que não têm voz ou rosto, os que não têm identidade. O mundo, em boa parte, é feito a partir de pessoas assim.

P-Sem dúvida. E os historiadores são muitas vezes mais tendenciosos do que os criadores. Mas este não é o primeiro romance que escreves…
R-Não. Em 2009 publiquei O Prazer e o Tédio, um folhetim que fui escrevendo num blogue em entradas quase diárias, durante um ano. Depois, em 2014, foi editado Um Amigo para o Inverno, que resulta da descoberta de uma história que julgava de todo improvável: a existência, em princípios dos anos 50, de células clandestinas do Partido Comunista no interior transmontano, em pequenas Vilas perdidas no meio das serras…

P-Que este prémio sirva o poeta e romancista. Neste novo livro a sair há realidade e magia. A literatura da América Latina influenciou-te ou é tudo muito teu?
R-Bem, eu nasci num mundo mágico, de bruxas e feitiços, de possessos, de curas com rezas e veneno de lacrau, de cobrões, de engaranho e erisipela… Era assim no Barroso, ainda na minha infância: de respeitinho para com o sobrenatural. Depois li O García Márquez, sim, e lembro-me de pensar que era como se já tivesse estado em Macondo, ou vivido lá… É verdade que esta espécie de realismo mágico vai aparecendo na minha escrita — não me livro disso…

P-Todos nós tivemos Macondo em pequenos, só que apenas alguns dão por isso. Escreves poesia e romances. A cigarra e a formiga. Como fazes para te organizares? Como partes para um livro?
R-Não parto para um livro: geralmente encontro-me com ele. É claro que a maior parte das vezes há uma faísca, um gatilho: um tema ou um acontecimento que leva aos primeiros poemas ou às primeiras páginas de uma história. Mas o que acontece quase sempre é ir escrevendo, indisciplinado, desorganizado, sem um rumo, sem um plano, até que um núcleo — de poemas ou de textos em prosa — comece a impor-se.

P-Então vamos falar da poesia editada em pandemia. A Educação das Crianças, editado pela Do Lado Esquerdo, onde o quotidiano deixa de ser monótono, dividido em cinco: “Van Gogh em Ferreira do Alentejo “; “Dois Sonetos Para as Antologia”; “O Sulfato das Vinhas”; “O Essencial Sobre Política “ e “O Real”.
R-A Educação das Crianças começa por arrumar poemas inéditos muito breves, juntando-os a um conjunto do mesmo género que andava disperso, e com citações frequentes, nas redes digitais. O livro é, talvez, essencialmente, uma espécie de ponto de ordem, ou uma reflexão – crítica, irónica – sobre o mundo actual: a política enquanto uma das artes de prestidigitação, por exemplo, ou a ecologia entendida como uma religião, e portanto deixando de fora o que lhe devia ser central.

P-O segundo livro editado em pandemia foi uma espécie de antologia do DN jovem (um caso sério à época a encontrar talentos literários) pela editora On Y Va com o título Estação. São poemas com muita oralidade e, curiosamente, bastante actuais (não te estou a chamar velho…)
R-Trata-se de poemas que, à excepção de dois ou três, eu dava como perdidos: não os tinha em arquivo, foram-se perdendo. Foi, pois, emocionante relê-los, revê-los. São poemas da juventude, escritos entre os meus dezasseis e os vinte e cinco anos. Alguns talvez tenham sucumbido à passagem do tempo. Outros, pelo contrário, mostram uma energia curiosa, própria da idade, claro, que chega a surpreender-me. O livro é o resultado de um empenhado e esforçado trabalho editorial, quase arqueológico: o António Manuel Venda, o editor, enfiou-se na Hemeroteca de Lisboa, dias e dias, à procura dos textos. Claro que é um livro muito especial para mim, embora não saiba muito bem como chega aos leitores. Foi, dos três livros da pandemia, talvez o mais prejudicado pela impossibilidade de apresentações públicas, de contacto com colaboradores e antigos leitores do DN-Jovem, de interacção, de diálogo, de revisitação conjunta. Agrada-me o que dizes quanto a serem, ou parecerem, actuais — porque resistir ao tempo é, sobretudo, isso: parecer que podiam ter sido escritos ontem.

P-E ainda o lindíssimo Penélope Escreve a Ulisses batido à máquina nas Edições Caixa Alta, onde aparecem poemas de amor e experiências à máquina com “o silêncio de uma estrela a despenhar-se num poço”.
R-Sim, a edição é belíssima e cuidada, vai até à criteriosa escolha do papel para que os textos, batidos à máquina, mantenham as imperfeições e a pureza do analógico. Isto começou com a pandemia, nomeadamente no primeiro confinamento, quando regressei à máquina de escrever, a essa lentidão, a esse relacionamento mais físico com a escrita, a essa ligação mais forte entre o pensamento e a mão, para parafrasear Sofia. E a quase totalidade dos poemas de Penélope Escreve a Ulisses foram escritos assim, batidos à máquina, na minha Olivetti Lettera 32… Acho que é uma maneira diferente de escrever, desde logo por não ser possível andar sempre a emendar, como quando escrevemos no computador: à máquina, de um modo geral, quando escrevemos um verso já o temos inteiro na cabeça. É um processo diferente do ponto de vista mental. Quanto às experiências de que falas, elas são quase inevitáveis: a máquina é também um brinquedo onde apetece brincar com as manchas , com as letras ou as frases que saltam da linha de texto ou se despenham na página. Mas Penélope Escreve a Ulisses é também o regresso, assumido, de que não me desligo, a um lirismo de que a poesia portuguesa mais recente se parece ter afastado.

P-Portanto, uma pandemia, três livros de poesia e o prémio Leya. Nada mau para estes negros anos.
R-Sim, do ponto de vista literário não foi mau… Mas o romance, por exemplo, andava às voltas desde 2011… De resto, tem sido sempre um bocado assim: é por momentos, por fases. Até porque posso passar largos meses sem escrever, e depois ser compulsivo, quase obsessivo… Há uma contradição que tenho dificuldade em explicar: por um lado, uma espécie de impossibilidade de deixar de escrever; por outro lado, a ideia recorrente de que me devia livrar da escrita, da literatura, e que isso faria de mim uma pessoa menos ansiosa, mais desassossegada… Enfim, escrever não é propriamente das coisas mais agradáveis de se fazer…

P-Eu diria que não te tens saído nada mal nesse caos. Calculo que a natureza a que estás ligado e a tranquilidade de Cacela sejam um bálsamo para essa ansiedade. Obrigado pela entrevista. Havemos de voltar. Entretanto continua a escrever. A rapaziada agradece.
R-Eu é que agradeço. Forte abraço!
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José Carlos Barros

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