Jorge Melícias: “Dar por mim a sorrir com um verso e contente com isso”

1-O que representa, no contexto da sua obra, o livro «O Recreio dos Fâmulos»?
R-  Uma derivação na continuidade, a transposição para formas clássicas do universo ontológico e axiológico em que se firma toda a minha obra.  Significa, sobretudo, uma linha de fuga conscientemente espartilhada pela forma que a molda. E o gozo que isso me deu. Trocar de registo, deixar de lado o verso livre e o verso branco e adoptar processos que tinha excluído, quase na íntegra, da minha poesia. E depois ir descobrindo que a muleta se mantinha de pé, quase por si, sem que isso fizesse perigar o ethos que norteou sempre a minha escrita. Convocar abertamente a rima ou, a espaços, recursos expressivos como a ironia, mais que o sarcasmo (que esse foi estando sempre presente ao longo da minha escrita, de uma forma ou de outra, em dose mais ou menos parcimoniosas) e redescobrir o sentido lúdico da poesia. Dar por mim a sorrir com um verso e contente com isso. Olhar o que se passa à nossa volta e, para lá da pandemia, pensar o horror e a fragmentação, a manipulação, o ágio e a mercancia, a corrupção e a vileza (e não, não sou negacionista e estou à espera da terceira toma), tudo o que se encontra a montante daquilo por que estamos a passar «E depois [ao menos] comprazer-me/ em fazer de toda esta infâmia/ um expediente estilístico.»

2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro, reunindo na prática dois livros («eu morrerei deste século às mãos de quem» e «taxionomia da esperança»)?
R- Depois de a oratória dos mansos, saído na Porto Editora, pensei em reunir num livro os poemas que privilegiavam, precisamente, estas formas mais canónicas. Ao eu morrerei deste século às mãos de quem?, acresceu a taxionomia da esperança, um livro dedicado ao meus quatro filhos, e que eu gostaria que eles um dia lessem, mais do que qualquer outra coisa que escrevi. Está ali plasmada aquilo a que a doxa vira as costas; a pureza do mal, a inteireza da húbris, «a ternura da devastação». Porque de senso-comum e de Me Too’s e de inclusões lenitivamente pitorescas está o discurso oficial pejadinho. E, principalmente, está ali plasmado o sentido do trágico do qual, paulatina e alegremente, fomos todos sendo extirpados, todos muito ciosos das nossas vidinhas «esse aforro tão pobre», cheios de medo de que ela, ao contrário do que nos é veiculado pela ideologia (no pior sentido marxista) seja apenas e afinal só os «dentes que o destino com desdém sacode».

3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R- Muito honestamente, nada. Traduzo. Muito. Neste momento tenho em mãos um ensaio literário do crítico canadiano Northrop Frye. Cada livro meu é sempre o último, até que deixa de ser. E se for, não vem daí mal nenhum ao mundo. Nem ao mundo nem a mim, cada vez mais. O que fiz está feito, fi-lo o melhor que sabia e não conseguiria fazê-lo de outra maneira, fi-lo, sobretudo, de uma forma minha, ao arrepio das correntes de ar do tempo e do leitor (essa esfinge normativa) e tenho mesmo a veleidade, vejam lá, de achar que nem tudo foi completamente ao lado. Se alguém quiser pegar naquilo com olhos de ler tem muito por onde matar a cabeça.
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Jorge Melícias
O Recreio dos Fâmulos
Guerra e Paz  11€

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