Jorge Gomes Miranda: “Um livro moldado pelos lugares”
1-O que representa, no contexto da sua obra, o livro «A Última Pedra»?
R-Todos os livros que escrevi são consequência de um tempo e lugar.
De uma imperiosa e inescapável necessidade.
E implicaram uma investigação linguística, cognoscível, pessoal, comportamental, familiar e política.
O que singulariza A Última Pedra em diálogo e contraponto com os outros livros, é porventura ainda cedo para discernir claramente.
Por um lado, porque o tempo de escrita e o de conceptualização do que se escreveu nem sempre coincidem. A que acresce a circunstância de, como diria Lacan, o artista ser portador de um saber que ele próprio ignora.
E se para um poeta que mantém um continum lógico, processual e temático a dificuldade existe, maior será o risco para aquele outro poeta que sou eu que constrói uma obra, na qual existem vários registos formais, distintas camadas de sentido que se vão sedimentando ao longo dos anos; diferentes momentos de escrita trespassados por várias vozes, que projectam distintas épocas da sua vida física e mental e da dos outros com quem coincidimos física, espiritual e culturalmente. Vários registos formais e várias vozes, sublinho, pois um dos principais enganos em que têm incorrido alguns leitores sobre a minha poesia é o de identificarem a voz do poema com a voz do poeta; procurando para o que escrevo uma filiação na corrente do confessionalismo ou da autobiografia, ou da de um “eu” imutável, ao mesmo tempo que consequentemente esquecem o quanto de verosimilhança e não verismo, ficção e não propriamente biografia, existe nela, e na própria ideia de poesia, desde Aristóteles (senão mesmo desde Platão) até agora.
A “voz do poeta”. Aqui poderia desde logo residir uma das minhas estratégias de escrita: a da multiplicidade de vozes e registos estilísticos e formais, por vezes no interior do mesmo livro. Vozes nem sempre coincidentes com a minha. Quer dizer, o personagem poemático que caminha pelo mundo é diferente de livro para livro, assumindo, por vezes, distintas posturas comportamentais, novas visões do mundo ou estados de alma.
Concretizando: ele, por vezes, faz longas viagens até cidades do sul ao encontro de amores adolescentes, eu prefiro viajar para norte, e aí permanecer com a amada, à sombra ventosa das praias; ele, frequenta discotecas, às horas em que eu, no silêncio da casa, persigo o poema; ele, por exemplo, em Portadas Abertas, nos poemas de pendor amoroso, coloca-se muitas vezes do lado daquele que experimenta os enganos do amor, e fica, num despenhadeiro de sentidos, sozinho a ver alguém partir (Ariana em Naxos), quando a realidade é que fui eu muitas vezes, num passado muito remoto, o vil, o que abandona (o Jasão, dessas breves histórias).
Há manifestamente no que escrevo um curto-circuito entre a biografia e a ficção; um trabalho de construção em torno do que se convencionou denominar a ficção do eu. Esta questão considero-a deveras estruturante. Vários caminhos, outras linguagens, outras experiências, ao qual o “eu” empresta o substrato, o subsolo de onde irrompem estados de alma como a solidão, a perda, o desengano, o amor; a interrogação e a dúvida, a amizade e o companheirismo, a luz a pique e o combate às sombras.
Na obra O Caçador de Tempestades são os poemas que inventam a identidade, que criam o rosto (múltiplo, contaminado de histórias vividas, testemunhadas, inventadas) pelo poeta na sua relação com os outros. Como um homem que observa/interpreta uma história comum, partilhável. Uma história, outras histórias,de que ele pode ser testemunha, e/ ou que resultam de uma escavação aos confins dos seus outros “eus” e da sua memória pessoal e cultural em diálogo (e não espelho) com os outros.
Intrinsecamente ligada à construção do “eu”, encontramos a questão da sinceridade e da autenticidade – sustentáculos da vida -, que está mais presente em O Que Nos Protege e em Requiem, muito embora também aí existam algumas linhas de fuga ao entendimento estrito do acontecido na vida do poeta. E se a biografia é o icebergue: a vida feita de outras vidas e geradora de clarividências e mistérios é a parte submersa.
Todas estas questões prendem-se à minha tentativa de quebrar em cada livro o molde (estilístico, anímico, conceptual) que um determinado livro elegeu.
Em última análise, à semelhança desses pintores chineses que erravam pelos lugares e pelas estações do ano, mudando de identidade, quase perseguindo um anonimato. Claro que eu não o consigo fazer, e há sempre um rasto incandescente de mim em todos os livros, uma voz que apesar das diferenças de tonalidade permanece.
Ou, como diria Wittgenstein, em Cultura e Valor, “É importante para mim ir modificando a minha postura ao filosofar, não permanecer muito tempo sobre uma perna, para não ficar preso. Como alguém que ao subir a uma montanha anda para trás por um breve espaço de tempo de modo a restabelecer-se e a esticar músculos diferentes”.
Este entendimento tive-o desde o início, e encontra-se presente ao longo de toda a minha obra. Porventura mais visível, tangível a partir de alguns livros. Contudo, para mim a unidade de Este Mundo, Sem Abrigo, enquanto livro sujeito a uma indagação temática e estilística próprias, vive também em Postos de Escuta, para dar apenas estes dois exemplos.
Mudanças de livro para livro não apenas visíveis, mas palpáveis. Porque a biografia é um corpo em permanente mutação. Não apenas revela a vida do poeta, mas um conjunto de experiências e pensamentos, estados anímicos comuns a qualquer outro homem. Daí ser também um campo de forças e muitas vezes um território de compaixão e empatia que nunca reduz a complexidade do individuo e da história.
No entanto, tudo o que afirmei até aqui não invalida, o quanto de pessoal e de testemunho real existe no que escrevo.
Mas sempre com as marcas biográficas a serem sabotadas, explodindo no interior dos poemas, longe, muito longe, de qualquer voluntária identificação entre poema e “apontamento vivencial”. Sendo como é, outras vezes, uma poesia narrativa, onde o poeta conta uma pequena história e de certo modo se converte em personagem dessa mesma história, como em Curtas-Metragens, onde os elementos biográficos são estilhaçados, ampliados e traídos, através da intuição e da imaginação. E se é verdade que existe uma forte ligação entre verso como principio estruturador e verso como pretexto respiratório para a expressão de reflexões, reminiscências, relatos e até mesmo interrogações e alarmes dirigidas aos seus contemporâneos, tal surge, no entanto, inúmeras vezes como reflexo e consequência do vivido e da ficcionalização do eu.
A vertente testemunhal que povoa os poemas de A Hora Perdida (envio a um célebre verso da Mensagem de Pessoa:“É a hora”) evidencia as relações entre intimidade e História, mágoa pessoal e derrota geracional.
Consequência de um tempo, a poesia é o espaço e o tempo onde o rosto da história muda mais depressa do que o rosto do homem. Perante esta mudança axiológica poderei ainda dizer que não me interessa de todo o lado egotista/narcisista do poeta, estrangulado em alguns lugares estilísticos e comportamentais. E julgo mesmo que num tempo de relativismo axiológico ao homem que também escreve cumpre aceitar como uma necessidade ética a responsabilidade individual pelos nossos actos. Responsabilidade em cantar a vida, a beleza, sendo o verso refractário a tudo o que as destrói. Em não rasurar a morte e o medo e o tempo de fazer o luto em nome de uma ideia de progresso pessoal. Como em alguns poemas de A Última Pedra. Não apenas a que resulta de sermos um ser para a morte, como em Fédon de Platão, mas a morte quotidiana, real que nos cerca. Daí o sentimento de companheirismo com os que procuram a beleza e a justiça e compaixão activa perante os que vivem a doença e a proximidade de um fim. E perante tantas derrocadas. De vidas, árvores, lugares, palavras. E em permitir o direito ao pathos que, como um aceno final, pode ser, em certos momentos, consanguíneo da respiração do verso.
E embora sendo eu um poeta que se move pelos caminhos da contemporaneidade há um outro traço que estrutura a minha escrita; refiro-me concretamente à relação que esta mantém desde o primeiro livro com os clássicos gregos e as cantigas de amigo. E por um retorno, numa estratégia de releitura da tradição, a certos temas que poderíamos chamar realistas.
Veja-se neste particular a importância de Camões, das cantigas de amigo, bem como das de escárnio e mal dizer, logo ali, numa obra como Velhos, exemplificada por uma sequência intitulada “retratos a sépia e mal dizer.” Neste livro existe a vontade de escrever um conjunto de poemas de homenagem, memória grata sobre os velhos, sobre a velhice, essa idade que praticamente toda a tradição ocidental – dos gregos (poetas, comediógrafos, filósofos) aos latinos, passando pela medievalidade, Shakespeare, e outros autores românticos – desconsidera. Inclusive, Molière apenas os retrata com manha, cheios de engodo e traição.
E, salvo um outro exemplo, o desprestígio dessa idade (declínio do corpo e da beleza, do espírito e da mente) continua até aos nossos dias. Outras tradições, no entanto, resgatam-nos e ao seu saber: a tradição dos povos nativos americanos, ou a oriental, onde são colocados no cimo das montanhas do coração, depositários de um conhecimento ancestral e do mais.
Importância do diálogo clássico com a tradição, sim, por exemplo a lírica grega, também nos poemas de Resgate ou nos de O Muro das Jubilações. Poemas que tentam guardar uma mistura de vida e saber literário. Um saber metamorfoseado pela vida.
Uma questão ligada a esta é a da importância de revitalizar a métrica clássica, e do soneto, já presente em poemas de Pontos Luminosos para desaguar num dos ciclos de O Muro das Jubilações. E da importância da claridade, mesmo que o poeta e o poema vivam em territórios terrosos, obscuros, órficos. Pois como dizia Ortega y Gasset “a claridade é a cortesia do poeta”. E, na esteira de Clarice Lispector: “Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.”
No que diz respeito à inconclusiva (quase uma aporia) contenda da “poesia da experiência” versus “poesia do conhecimento/ da linguagem”, diria por agora o seguinte: para o poeta que eu sou e perfilha maioritariamente um lirismo reflexivo e crítico a emoção e o pensamento vivem paredes-meias, são consanguíneas da linguagem, da intuição e da imaginação; essas novas formas de experiência e conhecimento do eu, dos outros e do mundo.
Daí que esse poeta e os seus personagens poemáticos caminhem, sem hesitações ou receios, pela(s) cidade(s). (Noutros livros, contudo, por exemplo, em Por Baldios, a Garça, prefiro subir as montanhas, passear junto aos rios e aos caminhos, atento aos pássaros, às árvores e às plantas, renomeados na sua identidade e lugares naturais, incursões fraternas lado a lado com estes outros portugueses que connosco compartem um território e um tempo. Aqui, o tom aparentemente brando de certas imagens, de determinadas palavras dá lugar noutros versos a um tom invectivante contra a mentira e a delapidação da paisagem natural).
Cidade(s) enquanto espaço mental e físico onde decorre a nossa história familiar e colectiva, território de tempo pessoal e colectivo que se vai desenvolvendo e transformando, às vezes, à revelia dos seus habitantes, o que provoca melancolia, e noutros instantes indignação, como em História de uma Enxurrada.
Afirmando-se então o poeta um homem de talha clássica e estirpe baudelairiana, ou que pelo menos reconhecendo a herança da baudelairiana figura do flanêur, seus percursos densamente urbanos, e a passagem pós-moderna deste, à contemporânea figura do voyeur.
Daí não surpreender que algumas das cenas presentes nos livros que escrevi aconteçam no interior de espaços da pós-modernidade, espaços oriundos da chamada sociedade de consumo, nos chamados “não-lugares”, ou lugares de passagem e confluência: centros comerciais, auto-estradas, estações de serviço, cinemas, discotecas, hotéis.
“Não lugares” tão distantes de outros que promovem o silêncio e o recolhimento, por mim num súbito enlace tão amados: quartos, quartos de hotel, bibliotecas ou jardins, reconhecíveis em Postos de Escuta.
Todos os livros, confesso-o, procuram ser escritos em traje de passeio e não em traje de fraque, perseguindo uma ideia de poesia verosímil, relacionada com a experiência estética da realidade, uma poesia relacionada com a vida e o seu cortejo de deslumbramentos e melancolias. Numa obra como Resgate, lembro, o leitor é inclusive convidado a assistir a uma inversão de mitos, um conhecimento da lenda do ponto de vista de daqueles que a tradição não escutou. Uma parte deste livro, intitulada Palinódias, busca uma nova interpretação dos mitos, como quem diz: “não, não foi de facto assim que tudo realmente aconteceu.” Com efeito, os poemas atribuem uma importância enorme à História e ao presente. Presente revitalizado e que nos reenvia continuamente para os espaços da tradição cultural. Contemporânea e politicamente assumida, como no caso dos reenvios culturais presentes num livro que é uma espécie de temporada de ópera, Falésias. Aqui, fala-se da melancolia da passagem do tempo, onde os temas amatórios ou nostálgicos, assumem por vezes uma atitude amorosa, e noutras, uma recusa, um “não”, inútil ou de consequências imprevisíveis. Pois o hedonismo nunca é incompatível com uma atitude inconformista, antes intensificando o encontro com os outros. Pois escrever sobre o amor e o horror da destruição histórica não é principalmente uma questão de estilo ou técnica formal, mas uma questão moral, uma recusa em não ferir propositada e cruelmente.
Em Falésias, título que pode ser uma metáfora para o amor, esse sítio íngreme, pleno de beleza e perigos, que vai sofrendo o avanço inclemente das vagas do tempo, o trabalho poético privilegia sempre, ou quase sempre, a ideia de releitura contemporânea das obras, e de um género (o operático) que nas últimas décadas vem trilhando caminhos – em termos de encenação, penso por exemplo nas de Peter Sellars– que o aproximam mais do real presente e vivido. Os poemas que escrevi surgem dentro deste entendimento. Nalguns, parti de passagens da própria história e “aproximei-as” da realidade presente e urbana que um qualquer de nós conhece e partilha; noutros, as cenas, os interlúdios musicais, as árias “dialogam” com o eminentemente político e social.
Poemas onde o estético se constrói como porta para o ético, e vive versa.
A ligação entre o homem, o poeta, o flâneur, o voyeur e o detective que busca no corpo da cidade as cicatrizes e as pistas de “crimes” por revelar, molda muitos das imagens e das palavras de um livro de poemas policial, uma investigação, descida aos infernos superficiais de uma cidade sitiada, que é Nova Identidade.
Um outro filão de sentido a considerar no meu percurso poético, vindo já do meu primeiro livro- o dos objectos que connosco partilham a existência- adensou-se especialmente em O Acidente e A Herança.
Breves conjuntos de poemas: ausências, perdas, falhas, silêncios, omissões, mediadas pela descrição e fala dos próprios objectos que procuram compreender os nossos actos.
Com a singularidade de apenas no final da leitura de cada livro ser perceptível a cadeia de causalidade, lei e espaço temporal que liga os objectos, que primeiramente foram aparições instantâneas de coisas isoladas e de momentos privilegiados, nessas vidas que pelo livro perpassam. Quer dizer, sob aparências elípticas e fragmentárias, começa em cada poema (num verso apenas, numa imagem) a perfilar-se a tragédia do destino pessoal, a vitalidade desesperada que fica de quem partiu, em quem ama.
O acidente (e há toda uma linha filosófica que parte de Aristóteles, em torno desta filosófica questão) é, lembre-se, o objecto (mas que aqui assume a posição de sujeito, ser na pluralidade de seres, e que sobe ao palco da vida e nos fala), aquele que se opõe (ainda Aristóteles) à essência, ao ser.
Mas não seremos todos nós, hoje, objectos, ou em todo o caso seres acidentais, relativamente a um centro (uma totalidade) esvaído em sangue? Cuja herança maior é a de amarmos e sermos amados?
2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-Como em qualquer existência, os primeiros momentos (os poemas iniciais) de vida traçam um mapa de possibilidades, aberturas e caminhos que as idades vindouras (o desenvolvimento das percepções e dos entendimentos que também são os poemas) irão revelar. No princípio é assim.
Até que o desconhecido, o imprevisível e o imaginário nos cativam no decorrer dos dias.
Tudo, por vezes, metamorfoseando.
Em A Última Pedra – um livro cuja feitura e fios de sentido não foram premeditados, mas se foram impondo no propósito de honrar os mortos e arriscar mente e coração na sua memória- o que fica depois das aceitações e das recusas é uma vida (um livro) composta de outras vidas e de vários tempos simultâneos: o presente amedrontado pela doença, o passado como um talismã, uma canção agreste, mas com muitos laivos de doçura, o futuro (depois da morte?) que porventura não termina no nada, onde tudo termina.
E sendo este um livro moldado pelos lugares: cemitérios, casas, quartos, lares, leitos de hospitais, forjas, montanhas, praias…, são inúmeros os personagens que o povoam.
Entre outros, velhos sempre disponíveis a retribuir a carícia ou o orgulho do afastamento e de gestos que renascem todas as manhãs; filhos que vão visitar os pais aos lares; uma mãe morta e um filho que a recorda nos mínimos gestos; e crianças, muitas crianças que chegam a correr com alegria ao limiar da nossa vida, trazendo desenhos, dádivas e encorajamentos…
Quer dizer, é este um livro de palavras com história, experiências e imaginações.
De palavras que são experiências, de experiências com vida (e não meras elucubrações mentais) que são as palavras; e de imaginações e sentires talhados no frio do pensamento.
Um livro de poemas, organismos, esculturas que irão sendo reveladas pelo tempo imemorial dos mortos, pelo silêncio atento dos contemporâneos e pela luz e pela sombra de tudo o que está ao redor e pelo vento das gerações vindouras.
Uma reflexão sobre a morte, essa irmã da vida, sobre a fragilidade de quem dela se vai aproximando, ou partiu já, rumo ao que não sabemos.
E sobre a vulnerabilidade dos que ficam do lado de cá da margem, ora em inquietação perante o sentimento trágico da vida, ora perseguindo esse espaço interior de interrogações, liberdades e recomeços.
3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
Time present and time past
Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time past.
If all time is eternally present
All time is unredeemable.
T.S.Eliot
O passado, não o paraíso climatizado
nem o território para voyeurs revisionistas histriónicos.
Antes constelação de amizade, coragem,
honra à palavra dada, olhar compassivo,
inteligência, metáfora e coração;
orgulho e vontade de falhar melhor,
quais cometas irrompendo no negrume.
Muito menos a aceitação do horror do país férreo,
ideológico, ultramarino. Por certo, em certos momentos,
o direito à memória de uma verdade familiar:
ruas desbotadas por onde passeava ao domingo de
manhã com o pai, à escuta da linguagem das coisas,
epitáfio e esperança que procura reparar
os nossos erros, falhas e ausências.
Cativado pelas incandescentes conversas em grupo
na Baixa portuense nos anos da Revolução,
contemporâneas das odisseias dos primeiros livros,
Os Cinco ou Os Sete: espigas de milho assado
ao entardecer; um caminho silvado e pedregoso.
Rente à pele, musgo e azul, as canções de Camões
e o deslumbramento de A Peregrinação.
O presente, a iniciação à ideia muito pós-moderna de que
quem não conhece pessoalmente o outro, ainda assim
arroga-se no direito de o julgar, excluir e odiar.
Verdades com prazo de duração, gadgets, modismos,
zonas de consolação precárias, rapidamente desaparecem
para nunca mais. Ao romper do dia substituídas por outras
ansiosas aplicações, disponibilizadas na “bright web”,
prometendo um futuro radioso. Impotentes
assistimos todos à morte de tantas espécies,
incêndios e enxurradas invadindo os territórios naturais,
interrogativos, desafiadores e essenciais.
O futuro, códice de afectos ou loop infinito de rancores?
Mas haverá sempre a ternura dos amigos que procuram
demolir a apatia, as selfies atonais, convocando
para a vida os instrumentos amorosos, os lieder solares –
tudo o que protege o coração da terra.
E entre outros desejos sobressai o de rios não contaminados,
serras sem serem esventradas, pinhais reflorestados;
cidades de fala clara e duradoura; e de corpos
dispostos à alegria e não apenas à sobrevivência.
Prosseguir. Como quem perfilha um aroma órfão e fraterno:
o do limão cortado à navalha e derramado sobre as feridas.
Escrever. Repartir o pão, não apenas com os mortos,
mas com os vivos que respiram a incerteza e o desassossego.
Escrever outra vez. E ao princípio da noite, contemplar o júbilo
do vento, repercutido no vestido indomado da rapariga rara.
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Jorge Gomes Miranda
A Última Pedra
Assírio e Alvim 16,60€
[Entrevista respondida por escrito.]