Jon Fosse: O que permanece sempre vivo e triunfante é o amor
CRÓNICA
| Célia Gomes
Três novelas, em trindade, com denominadores comuns: o fatalismo, o violino, o mar e o amor.
Fatalismo à espreita na «Vigília», que tem o seu começo no outono e transborda sombras do equinócio. Uma novela visual, onde Foss induz o leitor a um estado de pura hipnose recorrendo a anáforas e analogias. Por breves momentos, deixei de ver Asle e a grávida Alida a percorrerem as ruelas de Bjorgvin e passei a ver José e Maria. Esta, prestes a dar à luz Jesus e em busca de um lugar para pernoitarem. Contudo, no relato bíblico há fadiga, mas há um estábulo, há manjedoura, há uma estrela a guiar. Na «Vigília» só há cansaço, portas que se fecham nos becos húmidos e desumanos e há os fardos dos haveres que transportam nas mãos. Não será o fardo da própria vida? E germina o tal fatalismo presente em toda a trilogia, «ela sabe que tudo está predestinado e que tem de ser assim». E o refrão, «mas assim era e não havia maneira de fugir a isso» sucede-se em várias páginas, como chuva miudinha que lhes encharca os ossos. E nesse refrão imaginamos uma «tragédia grega», em que o herói é Asle, ou mais provavelmente será Alida, (pois como escreveu Steinbeck «creio que uma mulher que ama é indestrutível»). Alida, que nesta tragédia é uma espécie de Cassandra «ela tem um pressentimento que não mais irá voltar a vê-lo, por isso ele não devia ir, ele não devia ir hoje a Bjorgvin, mas ela já lho disse, ela contou-lhe aquilo que sabe, mas ele não lhe deu ouvidos, ele não dá ouvidos ao que ela diz». Será esta uma caraterística masculina? E o pressentimento cumpre-se no «Sonho de Olav». Que de sonho nada tem, lembrando um misto de «crime e castigo» de Dostoievski e de fantasia delirante de Murakami. Um «Sonho» povoado de tentações, de resistência, de calvário iluminado pelo brilho do ouro amarelo da pulseira comprada para Alida, «a mais bela pulseira do mundo». Mas será que Asle, agora Olav, cometeu os crimes de que é acusado? Talvez sim ou talvez não. Mais uma vez implícita uma analogia Bíblica, desta vez a «última ceia», a de Olav, sem discípulos, sem comida, mas com cerveja e com o velho no papel de Judas. Judas que o leva para a forca que estrangula sonhos, juventude, futuro, mas não estrangula o amor. «Olav fecha os olhos e já não existe mais nada, tudo o que existe é o pairar, nenhuma alegria, nenhuma tristeza, agora só existe o pairar, o pairar que é ele, o pairar que é Alida». E a música do violino sempre a pairar no ar e a alimentar o amor. Violino que é sina masculina, passando de geração em geração e a que Asle põe fim. «Talvez ele tivesse nascido para ser tocador de violino, mas esse destino queria ele contrariar». Será que contrariou? Serão as cordas do violino os fios com que as moiras lhe tecem o destino? E o destino de Alida é revelado, pela sua filha, na «Fadiga». É o momento da catarse tal como é descrita por Aristóteles. É aqui que o brilho da pulseira «tão dourada, tão azul e tão bonita» é ofuscado pela sombra dos pensamentos de Ales, tão desconfortáveis como a velhice, a decadência, a efemeridade da vida «Alida pensa que a sua filhinha, a sua menina, a sua amada filha também envelheceu, como é possível que os anos tenham passado por ela tão depressa, tão assustadoramente depressa». E o mar a acompanhar as vidas das nossas personagens. Um mar espião, cúmplice, que atrai, que mata e que liberta, «o mar inteiro é Asle e ela avança mais e mais e as ondas engolem Alida».
E em todo este triste fado, o que permanece sempre vivo e triunfante é o amor. Vence os crimes, vence a morte, vence o fatalismo, vence a órbita do tempo e do espaço. Um amor simbiótico, de sintonia, de música e dança «e ele sente que o seu amor por Alida corre e corre dentro dele e transborda para a música que ele toca e transborda para tudo o que cresce e respira». Um amor que todos desejamos que transborde dentro de nós e que, para os escolhidos, só acontece uma vez na vida. Um amor que não se procura, mas que se encontra num profundo olhar e que faz tocar violinos. Um amor que paire e que, parafraseando Saramago, nos «olhe por dentro». E que mais dizer? Apenas que «assim é e não há maneira de fugir a isso e será sempre assim».
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Jon Fosse
Trilogia
Elsinore 16,95€