John Williams: A história é vivida por pessoas

CRÓNICA
|agostinho sousa

Poderíamos estar na presença de (mais) uma biografia de Augustus, imperador romano de nome Gaius Octavius Thurinus, nascido em 63 a.C. e que viveu 76 anos (facto notável para a época), mas é muito mais do que isso, até por aquilo que o próprio autor o afirma em nota introdutória (levantando o véu do que se avizinha): «se existem verdades nesta obra, elas são as verdades da ficção, mais do que da História. Ficarei grato aos leitores que a tomem como foi minha intenção: como uma obra de imaginação.»
Augustus viveu uma época fértil em acontecimentos, num Império Romano recém-orfão de Júlio César, seu tio e pai adotivo, a seguir à qual deveria herdar esse poder que conquistou após ultrapassar inúmeros entraves. «É o mundo de Roma, onde nenhum homem sabe quem é o seu inimigo ou o seu amigo, onde a licenciosidade é mais admirada do que a virtude e onde os princípios se tornaram servos das pessoas.»
Um Império muito pragmático, como relata Estrabão de Amásia: «é um mundo imediato – de causa e consequência, de boato e facto, de vantagem e privação. Mesmo eu, que dediquei a minha vida à busca do conhecimento e da verdade, consigo nutrir alguma simpatia pelo estado do mundo que ocasionou este desdém. Eles [os romanos] encaram o saber como um meio para um fim; a verdade como se fosse uma coisa a ser usada. Mesmo os deuses deles servem o estado, não o inverso.»
E, entre as inúmeras vicissitudes que o biografado ultrapassou, aquela que o marcou mais incisivamente foi o facto de a sua filha Júlia, muito querida por si, ter-se tornado amante de um relevante conjunto de homens que tentarão trai-lo. Salvou-se pela astúcia e capacidade de antecipação, retribuindo o fim a que estava destinado aos seus opositores: a morte. A filha, Júlia, também será punida mas, dado tratar-se da sua «pequena Roma», terá um destino menos definitivo.
A riqueza deste livro reside no enredo ser-nos dado a conhecer através de cartas ou extratos de diários de grandes figuras da época, onde se vai colhendo, com avanços e recuos temporais, entre a dúvidas e certezas, entre o facto e o boato, por diversas opiniões, tantas vezes contraditórias, sobre os acontecimentos romanceados da História.
Numa das cartas do próprio Augustus sente-se o desabafo, senão mesmo o desencanto, do Homem que também é senhor de um Império: «Foi mais um instinto do que o conhecimento, no entanto, que me fez compreender que se é o destino de um homem mudar o mundo, é necessário que primeiro ele se mude a si mesmo. Para obedecer ao seu destino, deve encontrar ou inventar dentro de si alguma parte dura e secreta que é indiferente a si mesmo, aos outros e até ao mundo que está destinado a refazer, não à imagem do seu desejo, mas à de uma natureza que ele descobrirá no processo de reconstrução.
E, no entanto, eles eram meus amigos, e mais caros para mim no preciso momento em que no meu coração desisti deles. Que animal contrário é o homem, que mais preza o que recusa ou abandona! O soldado, que escolheu a guerra como profissão, no meio da batalha anseia pela paz, e na segurança da paz anseia pelo choque de espadas e pelo caos do campo ensanguentado; o escravo que se opõe á sua servidão imposta e pelo seu trabalho compra a liberdade, amarra-se a seguir a um patrão mais cruel e exigente do que o seu dono era; o amante que abandona a sua amada vive daí para a frente no sonho a perfeição imaginada dela.»
Enfim, quando a filha lhe pergunta se valeu a pena tudo o que ele fez para salvar e construir a Roma que habitam? Augustus responde: «Tenho de acreditar que valeu a pena. […] Ambos temos de acreditar que sim».
Esta leitura reforça a crença de que a História é vivida por pessoas, comuns, de carne e osso, com paixões e desalentos, traições e vitórias, tanto no passado como no presente, porque tudo isto são os condimentos da vida. Uma notável obra que merece releitura.

Espinho, 20/02/2022
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John Williams
Augustus
D. Quixote  17,90€

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