Joaquim Jesus | O Lugar do Olhar

1. De que falamos quando falamos de “Cianotipia”?
R – Antes de responder a esta questão é necessário entender duas coisas:
i) Primeiro, é necessário saber que a Cianotipia consiste num processo fotográfico férrico cujas imagens são obtidas por contacto direto, prescindido de uma câmara para se realizar.
ii) Segundo, que a perceção e representação dos objetos através da câmara se faz através de uma relação de distâncias determinadas por regras óticas e geométricas, e por uma abertura monocular fixa que corresponde a um lugar matematicamente definido. O seu princípio ordenador estabelece a posição do observador diante do mundo, numa cultura, a ocidental, que se esforça ao máximo por manter a distância do objeto estudado, mediante regras e mecanismos controláveis.
É então rejeitando este topos camarário que a Cianotipia, enquanto impressão da luz, propõe uma visão binocular e desterritorializada sobre o objeto, já que, ao abolir a câmara, coloca em crise a relação perspética/matemática com os objetos e a sua representação mimética. Ela surge como um espaço aberto, aonde a visão que se exerce é desterritorializada, permitindo uma série imensa de posicionamentos, uma vez que não existe uma distância determinada por regras óticas e geométricas. Por conseguinte, gera-se um olhar móvel, livre de peso, e que vê em todos os sentidos. As imagens produzidas libertam-se das leis da perspetiva, não têm cima nem baixo. Nem o olhar nem o mundo são fixos: flutuam, um em relação ao outro, numa nova liberdade e impermanência. As ruturas são constantes, pelo que não pode haver um único tipo de visão com respeito à realidade, mas múltiplos. A visão deixou de ser monocular para ser binocular. A sobreposição das imagens que cada olho produz obriga ao erro de paralaxe. Dá-se início a uma desterritorialização do olhar, e a uma recolocação da subjetividade do observador, naquilo que denominei uma espécie de visão quântica do mundo.
2. Qual a principal ideia que pretende partilhar com os seus leitores?
R – A principal ideia deste livro é propor ao leitor, através de um diálogo entre uma fotografia com câmara e uma fotografia sem câmara (cianotipia), uma reflexão crítica sobre os dispositivos da visão. Isto porque, como sabemos, os dispositivos da visão têm moldado os nossos olhares e, portanto, os nossos saberes. Assim, pensar a maneira como olhamos para as coisas, a forma de ver, os posicionamentos privilegiados, são questões que nos podem levar a equacionar formas de resistência dentro desta teia de poder. Nós não vemos isoladamente. Tempo, visão, sentido e contexto, moldam a perceção daquilo que vemos e moldam a nossa compreensão do presente. Deste modo, uma visão quântica, uma visão multidisciplinar, uma visão em contexto, com espaço, tempo, em estratigrafia… com um certo erro de paralaxe, só nos obriga a movimentações e reposicionamentos constantes perante as nossas convicções, num jogo de perpétuas dobras de evoluções e involuções, fluxos que vão sempre no sentido de uma auto-reflexão.

3. Como é que a escola e os professores podem ajudar os seus alunos a

aprender a ver?
R – O “Lugar do Olhar” procura precisamente, através de uma jornada pelos discursos da fotografia, entender a imposição de um determinado tipo de olhar na perceção das coisas, não pretendendo determinar aquilo que é bem ou mal observado, mas sim “compreender como se fabrica um olhar coletivo, uma cultura visual: por que dispositivos, por que mecanismos de legitimação”, com que efeitos (Sicard, 2006:17). Neste sentido propor um qualquer modelo ou visão privilegiada sobre “aprender a ver”, estaria em negação com a ideia central livro que aponta precisamente para um questionar constante do olhar: o lugar do olhar.
Estou de acordo que no mundo atual, cada vez mais repleto de mensagens visuais, se torna fundamental que os alunos de artes visuais entendam criticamente os fenómenos da visão e da perceção, questionando e refletindo permanentemente sobre o seu ponto de vista. Uma visão crítica do mundo e das coisas é importante para a construção dos sujeitos na relação com os outros e consigo próprios, fornecendo-lhes as ferramentas para se movimentarem num meio cada vez mais incerto, na persecução de “armar cada mente no combate vital rumo à lucidez” (Morin, 2000:14). Por exemplo, enquanto professor/artista queria que os alunos percebessem que a simples possibilidade de virar um desenho ao contrário reconfigurava a perceção visual que tinham das coisas; e que, aplicando esta consciência crítica a outros contextos, ela podia configurar-se como uma ferramenta para questionarmos os alicerces das nossas certezas, ajudando-nos a movimentar num mundo de constantes mutações. Do mesmo modo, mas agora enquanto investigador, observei através das performances dos professores a que assisti nas mais variadas aulas, que não existe uma só maneira de falarmos sobre uma garrafa, mas sim várias, e que nenhuma é melhor do que a outra; são apenas pontos de vista diferentes, enformados pelas experiências de cada um. É com esta imagem que acredito que possamos ajudar os alunos a aprender a ver. Num processo de reflexão e crítica permanente sobre o terreno das nossas evidências.
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Joaquim Jesus
O Lugar do Olhar-A cianotopia no ensino em artes visuais
UP Editorial, 12€