Joaquim Fernandes: As outras Fátimas

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «As Outras Fátimas que a Igreja Católica não Reconhece»?
R- O tema das “aparições marianas” é uma componente maior da chamada religião popular portuguesa, interpretando por isso as formas mais simples da religiosidade e da piedade populares associadas ao culto da Virgem Maria entre nós e noutras áreas de influência da cultura católica planetária. As origens do culto mariano, ou da mariolatria, remontam às religiões da Antiguidade, sobretudo da região do Mediterrâneo, marcadas pela veneração às variantes da chamada Grande Deusa-Mãe, enquanto divindades ligadas à terra e à fertilidade. Há cerca de 40 anos que me interessam estas manifestações devocionárias, não oficiais, mas desde sempre toleradas pelas autoridades católicas romanas. Estudo este tipo de fenómenos de crenças coletivas há mais de 40 anos. No início da década de 1980, juntamente com a minha colega, a historiadora Fina d’Armada, já falecida, tivemos acesso aos arquivos originais de Fátima e aos primeiros interrogatórios feitos aos três “videntes” – Lúcia, Francisco e Jacinta. Após várias monografias exaustivas, que tiveram os acontecimentos de Fátima 1917 como epicentro de análise específica, escritas em parceria com Fina d’Armada, ocorreu-me analisar comparativamente todo um repertório de casos de “aparição” de entidades femininas ao longo da nossa História, e com destaque para os séculos XIX e XX – quase sempre e a priori – identificadas com a mãe de Jesus Cristo. Esta obra é deste modo uma viagem retrospetiva, à génese do culto mariano entre nós e uma análise detalhada da fenomenologia que a envolve nos seus diferentes parâmetros, da ecológica à física.

2-Focando na pesquisa que conduziu a esta obra: que novos elementos traz para o conhecimento e a discussão do tema?
R- Este trabalho visa produzir e aprofundar uma análise detalhada da fenomenologia dita “mariana” nos seus diferentes parâmetros, da ecológica à física, da psicológica à etnológica, já sugerida e esboçada por outros investigadores. As fontes disponíveis são vastas mas elegi o grande repertório de Frei Agostinho de Santa Maria, a obra “Santuário Mariano”, do século XVIII, como fonte de eleição para essa análise de parâmetros e caraterísticas. Note-se que o estado do conhecimento científico alterou-se radicalmente desde 1917 e os eventos nucleares da Cova da Iria: desde então outras disciplinas científicas surgiram e amplificaram-se levando a novas interrogações e questões sobre a matriz essencial desses fenómenos “aparicionais” complexos. Assim. Da tradição “mariana“ que mergulha na nossa tradição medieval profunda parto para a análise de 16 situações similares à de Fátima, mantendo sempre à vista o evento de 1917, estabelecendo semelhanças e divergências entre si e buscando sentidos para a sua não-aprovação pelas entidades católicas mas também para a continuidade de alguns cultos à revelia das mesmas. Nas “Conclusões” da obra equaciono algumas hipóteses comuns a experiências “aparicionais” similares no plano profano e questiono as fontes destes fenómenos cruzando-os com as várias etnografias e tradições populares europeias. Este trabalho culmina uma tentativa de questionar a problemática do mito “mariano” no seu todo, libertando-o das amarras exclusivas da teologia e do catolicismo popular e elegendo-o como um tópico multidisciplinar alvo de novos olhares e perspetivas, algo até há pouco julgado impossível e mesmo “ilegítimo”. Creio que no essencial, reabre-se a discussão sobre a essência última do estímulo que desencadeia o fenómeno “aparição”, designação que propende a ser gradualmente substituída por “visão”, como algo interior, experiência pessoal não partilhada. Uma mudança de paradigma, no seio da própria crítica teológica católica, aliás, propulsionada desde o comentário do cardeal Josef Ratzinger, o Papa emérito Bento XVI, ao tema de Fátima e das “aparições marianas” no seu todo.

3-A que se deve, mais de 100 anos depois das aparições, o contínuo interesse e a viva polémica que ainda despertam?
R- Passado mais de um século sobre os eventos da Cova da Iria redescobrem-se ainda facetas e detalhes inéditos sobre os mesmos fenómenos: dos efeitos secundários invocados pelos “videntes” a novas informações que as conhecidas e popularizadas fotografias do “milagre do Sol de 13 de outubro pareciam até há pouco tempo.  Trata-se, julgo eu, de uma reavaliação fatal e mesmo necessária, decorrente, como destaquei da evolução dos saberes, das ciências humanas às físicas, e que tenho tentado reunir e estimular através do chamado “MARIAN Project” junto da comunidade académica internacional, justamente proposto para estimular a suscitar novas respostas para uma fenomenologia milenar. Como exemplo, um dos produtos finais desse novo questionamento multidisciplinar  foi dado à estampa com o volume “Fátima. Mais além da Fé” (Book Cover, Porto, 2019).  Para os fiéis incondicionais da interpretação popular de Fátima, estas novas leituras racionais podem não ter qualquer interesse ou efeito nas suas crenças imediatas, mas deverão perceber que estas interpelações fazem parte do processo histórico de ampliação do Conhecimento científico. Galileu e tantos outros experimentaram as mesmas oposições e consequências bem piores… Diria mesmo que esta demanda por outras respostas ultrapassa a dimensão física da Realidade alargando-se a esferas últimas da nossa essência.
_________
Joaquim Fernandes
As Outras Fátimas que a Igreja Católica Não Reconhece
Manuscrito  14,90€

COMPRAR O LIVRO