João Tordo e os vícios que nos comandam mas nunca obedecem

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

A origem do colapso permanente em que vive Pilar Benamor, a história antes das histórias, personagens saídas de um negrume onde se enterraram por sua conta e risco. Sempre a chuva como pano de fundo, mesmo em Lisboa quase na primavera. O passado que nos persegue inexoravelmente, mesmo quando tudo fazemos para que fique para trás. Os vícios que nos comandam mas nunca obedecem. A nossa vida onde somos seres isolados com raras visitas e o brilho de um sorriso que é raro aparecer.
Mais um thriller negro de João Tordo. Mais um livro a não perder. O submundo de Lisboa carregado de seres perdidos na noite, abandonados pela sociedade “Existiam códigos de conduta, convenções sociais, normas vigentes. Maneiras de uma pessoa se comportar à mesa, num jantar, numa festa, no cinema e até numa repartição de finanças. E eu odiava tudo isso.” Pessoas que se perdem pelo mundo, pelas ruas e corredores das casas, pessoas ao mesmo tempo frágeis e destemidas, ansiosas e incisivas “Pensei então que, desde miúdo, me metera no caminho das coisas e tivera o hábito de não aceitar os outros como eram.”Uma história que começa inocentemente, descambando aos poucos e mais tarde precipitadamente num ódio imenso e ancestral “Você conhece alguma coisa que, podendo complicar-se, não se complique?”
lei de Murphy aplicada à violência insensata dos estados marciais (sim, existem estados marciais nas ruas e cidades e até mesmo em nós). Os vícios, as dependências que podem resultar da nossa incapacidade em lidar com a realidade, ou do real não chegar a ser aquilo que o nosso interior gostaria que fosse “Por vezes, tudo que queria era esquecer. Na verdade, não era só às vezes; era sempre. Se pudesse soterrar tudo debaixo do prazer, fá-lo-ía de bom grado. Se o prazer durasse… — Mas o prazer nunca durava, continha a semente do seu próprio fim, e era também um cruel gancho que chamava a si, vezes sem conta, quem dele se tornava dependente.”
E nisto tudo em que ficamos? O que somos? Para onde vamos? O que vivemos e como vivemos? Com sorte ou azar ou anódinos nos dias? Ou isso tudo ao mesmo tempo?
“Que era viver, senão isto — uma alternância constante entre coisas fáceis e difíceis, entre momentos de alívio e de desespero, entre as expectativas ilusórias e a dura realidade?”
Talvez tudo isto ao mesmo tempo.
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João Tordo
Os Dias Contados
Companhia das Letras  21,95€

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