João Tordo: Thriller em dose dupla
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Mais de mil páginas depois, dois thrillers com as mesmas personagens principais, lidos às avessas, primeiro o segundo, depois o primeiro. São livros negros com mau tempo, vícios e pessoas frágeis que se fazem fortes. Mais negro o primeiro, mais divertido o segundo, a acção e as tramas bem urdidas, noir que chegue para janeiros de chuva com nuvens negras e mar gelado e revolto. Pilar e Cícero, ninguém é inocente e não há provas em contrário, grandes personagens, profundas e leves, mas também pesadas como o mar.
Como pesado é o mundo em que vivemos e o que existe e não se sabe ou se finge não saber da sordidez escondida no quotidiano. Eu que adoro Chandler e Padura (há uma personagem Mário Conde – homenagem?). Acima de tudo, saímos dos livros diferentes do que entramos, ou iguais mas mudados, uma versão diferente da forma como vemos os nossos defeitos e vícios e mesmo virtudes.
A nossa vida sem sentido, à qual damos algum rumo por tempo indeterminado e depois não sabemos bem como continuar quando tudo se interrompe “Há um limite para o tempo que se pode viver intoxicado, ébrio de vida.”
Dois romances sobre a melancolia que nos persegue todos os dias, que nos faz sermos persistentes e tristes e alegres ao mesmo tempo e de vez em quando ou quase sempre. “Porquê Tolstoi?””Porque era um melancólico, tal como eu.”
A chuva sempre presente “A casa afundada em silêncio. A chuva caía, vagarosa, sobre todo o país e a Península Ibérica, sobre o Atlântico Norte e o mar dos Sargaços, o Mar do Norte e o Cáspio. Talvez chovesse no Universo inteiro, e os homens fossem também gotas de água com a consistência ilusória da carne.”
Assassinos, ladrões de almas, pedófilos, homens com poder, seitas, religiões, tudo a competir pelo mal ou por aproximação ao mesmo, “‘O mal é o mal’, respondeu ela. ‘Está entranhado em nós, sabemos quando o fazemos. O corpo sabe, a cabeça também.’”
Vivemos com as nossas angústias, os nossos vícios e todos precisamos de ajuda, “somos tão doentes como os nossos segredos.” Não somos perfeitos e muito longe estamos “Cometemos os mesmos erros repetidamente, à procura de resultados diferentes.”
Mas há alguns que se safam, nem sempre os que lêem, mas “os homens que não se metem na vida dos outros descansam melhor.”
Não perder a esperança, eis uma tarefa difícil mas não impossível. “ O cérebro humano é um órgão de poderes cósmicos, onde habita todo o Universo.” E nós aqui sem o sabermos.
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João Tordo
-Águas Passadas
-Cem Anos de Perdão
Companhia das Letras 13,95€ e 21,95€