João Ricardo Lopes: “O poder da confrontação, da transformação, da criação”
1-No ano do centenário de José Saramago, qual o principal legado do escritor?
R-Quando se avalia um legado, avalia-se o que de alguém nos fica como existência perene e útil. Saramago deixou-nos um legado poderoso, misto inextrincável de homem e de obra, de exemplo e de singularidade. Dele fica-nos a teimosa reposição da ordem no caos, a afirmação do eu contra a indiscutível predisposição da sociedade para o mal e para a hipocrisia, a incómoda preferência pela verdade e pela justiça, apesar da generalizada aceitação das “coisas” como elas são. Saramago enfrentou adversidades toda a vida. Pese as origens pobres e à margem dos círculos literários, soube dotar-se de uma voz e pôde criar uma literatura sua, cheia de autenticidade, sageza e cosmopolitismo. Em Lanzarote vi as pedras que apertava nas mãos e que dizia serem “as sementes da terra”, vi a secura quase inóspita em que foi capaz de fazer germinar beleza e vi a organização (quase miraculosa) do seu trabalho. Esse o seu legado: o poder da confrontação, da transformação, da criação.
2-Qual é o seu livro preferido escrito pelo nosso Nobel?
R-Como muitos outros leitores de Saramago, creio que Memorial do Convento é a sua obra maior.
3-Razões dessa escolha?
R-Em Memorial do Convento, o mais notável feito de Saramago prende-se com a narratividade: tudo nos é contado com extrema eficácia, inteligência, sentido de humor, com inegável sagacidade e eruditismo, com ímpeto recriador. Cada parágrafo deste romance é uma prova de génio, revelando as qualidades máximas de quem soube estudar o já sabido e trazer à literatura a prodigiosa natureza do “novo”.
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João Ricardo Lopes, Escritor