João Ribeiro-Bidaoui: Anatomia da cunha portuguesa

P-Como surgiu a ideia de fazer a tese de Doutoramento sobre a «cunha», que está na génese deste seu livro «Anatomia da Cunha Portuguesa»?
R-Como um dos entrevistados para a tese referiu: “é algo com que todos lidamos, desde pequeninos”. Sempre me impressionou muito a forma como tantos normalizavam a cunha. E sempre me preocupou que essa normalização se estivesse a tornar numa socialização agressiva, tornando a cunha uma norma social, incontestada. Penso que para largas franjas da população já é uma norma de conduta. Não parece haver capacidade para considerar a cunha como um instrumento de desigualdade social. Quero ser claro: não tenho nenhuma atitude moralista perante a cunha. Mas sempre que fui alvo de pedidos, ou quando eu próprio os protagonizei, senti-me incomodado, senti que não era correto ou justo. Senti até indignação. Numa dessas vezes, senti profunda indignação comigo próprio. Tenho memória física dessa indignação. A determinada altura senti um impulso para estudar Sociologia, numa segunda licenciatura. Que a meio do segundo ano se converteu em Doutoramento, graças ao encorajamento de grandes professores como o José Manuel Resende ou João Sedas Nunes. Na ponderação sobre o tema da investigação, fiquei pasmado quando me apercebi que as ciências sociais portuguesas nunca se tinham dedicado a compreender, com maior profundidade, o fenómeno da cunha em Portugal. Pouco mais havia que comentários laterais em estudos da ciência política sobre a corrupção, ou referências (incontornáveis) no olhar antropológico do João Cutileiro sobre o Alentejo profundo e, aqui e ali, notas da Maria Filomena Mónica sobre os ricos e os pobres. Tornou-se claro que entre a motivação que a minha indignação gerava, e o rigor que o método científico exigiria, este era o tema a que teria que dedicar parte substancial dos 5/7 anos seguintes da minha vida – fui sempre trabalhador-estudante, desde o segundo ano de Direito em Coimbra, e o Doutoramento não foi excepção.

P-Falamos, com facilidade, em “meter uma cunha”: qual é, do seu ponto de vista, o verdadeiro significado da palavra?
R-O livro explica a origem da expressão. O João Cutileiro explica-o bem melhor do que eu. Deixe-me usar uma metáfora. Imagine uma circunstância em que não se tem os meios necessários e adequados para arranjar um motor avariado. Ou porque não se tem conhecimentos suficientes ou acesso a informação relevante. Ou por não se ter dinheiro para comprar ou importar as peças sobressalentes. Resta improvisar uma peça, sem grande exigência de arte nem como resultado de ofício qualificado. E enfia-se tal peça, tosca e sem forma técnica, algures no meio do problema no motor. Para o aguentar, pelo menos durante algum tempo, e como resposta rápida, imediata, esperta e espertalhona perante a circunstância. A circunstância da avaria do motor do carro velho e usado. Velho e usado por impossibilidade financeira ou por falta de impulso inovador para o substituir. A ação de quem “encontra” ou “faz” a tal peça tosca é mobilizada, consciente, e objeto de consideração crítica dos indivíduos – sabem por que o fazem; e porque não o podem fazer de outra forma. Essa peça que se enfia na engrenagem do motor, uma engrenagem técnica que resulta de ciência e técnica, torna o motor numa geringonça. Essa peça é a cunha. É também um reflexo de imperfeição da legitimidade dos processos políticos, públicos, administrativos – reflexo da falta de confiança na engrenagem, que funciona com regras; é o reflexo da falta de qualificações que gerem acesso a outro nível de conhecimento tecnológico.  É um reflexo de desigualdades. E essas desigualdades não são só baseadas na clássica (e datada) obsessão pela distribuição de acesso a fatores de produção (marxismo do século XIX), ou na mais “60s flower power” mentalidade da distribuição dos poderes simbólicos e respetivas dominações, mas são também, e em meu entender sobretudo, baseadas na mais pragmática desigualdade na distribuição da informação, e das capacidades de compreender a informação, que impedem os indivíduos de agir de forma mais emancipada, mais crítica – algo de que estão plenamente conscientes.

P-De acordo com a sua investigação, este fenómeno da «cunha» sempre existiu ou é algo de recente?
R-No Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, escrito no século XVI, a certa altura, o Diabo goza com o corredor (simbolizando a magistratura) exclamando “Oh amante de perdiz”, sendo que perdiz é uma ave que se dizia usar como pagamento para subornar alguém, pedindo-lhe favores. Noutra obra marcante da literatura portuguesa, em pleno século XIX, encontramos o seguinte excerto no Primo Basílio, de Eça de Queiroz: “Durante todo o caminho não deixou de falar excitadamente da sua tese, do escândalo dos patrocinatos, do barulho que faria se fossem injustos — arrependido agora de não ter metido mais cunhas!”. A minha preocupação não foi fazer um rastreio histórico do fenómeno – isso seria outra tese. Mas tive a preocupação de encontrar um ponto sólido de referência comparativa que fosse anterior ao 25 de Abril, para tentar compreender em que medida as revoluções, as alterações violentas de significação política, sob bandeiras de igualdade e liberdade, resultam ou não em transformação dos mecanismos de legitimidade. Usei a observação antropológica de Cutileiro num grupo de aldeias alentejanas nos anos 60 e 70. E o que ele observou então pode ser igualmente observado hoje nos mais coloridos corredores e vielas da Lisboa de hoje. A conclusão é desapontante. Há algo mais profundo e determinante na relação entre os indivíduos e o Estado do que o que possa ser alterado por rupturas políticas ou por 40 anos de teorias de construção social.

R-E trata-se de uma fenómeno essencialmente português, onde podemos encontrá-lo em todos os países?
R-Essa foi outra motivação para a tese: essa ideia de que a cunha é algo muito português, havendo mesmo quem afirme, com toda a certeza, que é algo único dos portugueses. Naturalmente tais manifestações apenas sinalizam falta de mundo, o nosso constante isolamento e a fraquíssima qualificação nacional. A comparação de fenómenos sociais semelhantes, em países com contextos sociais, culturais e económicos distintos, forneceu algum conteúdo relevante para a conceptualização da cunha. Mas identifiquei esses casos, e apenas isso, na medida em que me permitisse uma comparação com a cunha. Como por exemplo o piston ou passe-droits em França ou o jeitinho no Brasil; mas também outros sistemas, mais estruturados, onde são comuns certos comportamentos semelhantes à cunha, ao jeitinho ou ao piston, como o guanxi na China, o string-pulling nos Estados Unidos da América ou o brokerage/patronage no Reino Unido (e na Commonwealth). Podemos afirmar com segurança que a cunha não é uma idiossincrasia portuguesa – isso é uma evidência científica.

P-A sua «anatomia da cunha portuguesa» que factos novos traz para os seus leitores?
R-É o primeiro estudo científico sobre a cunha como conduta social. Procura anatomizar os seus elementos essenciais (oficiosidade, funcionalidade, relacionalidade, reciprocidade), cotejando-os, permitindo assim uma tentativa de categorização. E, por outro lado, faz um primeiro ensaio de catalogação de justificações perante a cunha (Ajudar, por consideração; corroer a regra injusta; decidir, em liberdade e pelo mérito; desservir inapropriadamente a ineficiência; prejudicar oportunisticamente a concorrência; falhar no exercício de funções; cumprir critérios estabelecidos por regras; fazer aquilo que se quiser; abusar do poder de servir o bem comum, em benefício próprio; ajudar a fatria para além dos limites do razoável; cuidar daquele outro). É uma catalogação circunstanciada e que não é, nem nunca o poderá ser, exaustiva. Porque os indivíduos apreciam cada situação diferentemente, com sentido crítico (conscientes) e mobilizando diferentes ordens de valores para justificarem o seu comportamento, em cada situação com que se confrontam.

P-Poderemos alguma vez eliminar a «cunha» como algo «natural» do nosso dia-a-dia?
R-Não é nada natural, nada. Não há nenhum indício de base científica, que o explique como natural. É uma ação consciente e é uma resposta a determinadas situações. Pode, e deve, ser corrigido. Um exemplo ilustrativo: no passado, marcar consultas no SNS era um exercício totalmente conduzido por pessoas. Em breve, fruto de inovações tecnológicas, será um processo totalmente informatizado e sem mediação humana (e já o é nalguns casos). Não é difícil ver como isso contribui para o desaparecimento das cunhas nesse contexto. Todos com acesso a um sistema transparente, com regras claras, reconhecidas como legítimas e funcionais. Disponibilizam-se slots, dá-se acesso ao sistema, vê-se com transparência todos os slots disponíveis, e cada paciente pode escolher, entre as várias opções. É essa a tendência na contratação pública, na inscrição em escolas, no acesso a emprego – como já acontece num sem número de serviços privados. Haverá sempre espaços de mediação, onde o poder estará concentrado. Concentração de poder e falta de transparência serão sempre terrenos férteis para uma distribuição desigual de acesso, gerando competição ou injustiça, convidando a favorecimentos. Mas é fácil compreender que, com o tempo, os pequenos poderes, e a sua concentração, terão tendência a desaparecer. Só contará a justiça no acesso e a igualdade no serviço – e só uma distribuição desigual de acesso a informação, e das capacidades para usar tal informação, pode continuar a reproduzir desigualdades. O “funcionário”, a pessoa que está no meio, tenderá a desaparecer – levando ao desaparecimento progressivo das cunhas. Uma aceleração tecnológica e uma atitude de radical transparência na prestação de serviços públicos resultará no fim das cunhas, porque se eliminará o ambiente de oficiosidade, e porque desaparecerão os incentivos para a reciprocidade.

P-A «cunha» é mais uma questão enraizada na mentalidade colectiva ou será passível de solução com medidas legais?
R-Combate-se com o pragmatismo de compreender porque acontecem e agir na resolução das desigualdades que as incentivam. Quase sempre com origem em falta de transparência e/ou em excesso de relacionalidade de todos os tipos – não só relações políticas/partidárias, mas filiais, de colegas de escola ou de Faculdade, entre outras relações. Confiamos mais em quem conhecemos do que em processos supostamente públicos e legítimos. Exactamente o contrário daquilo que deve definir uma República. Mas as pessoas têm bem presente um sentido comum do que é justo. E preservam-no ou contornam-no consoante as suas experiências e perante as diferentes circunstâncias. É perante o que percecionam como injusto, como resultado de desigualdade de acesso, de acesso à mobilidade social, que podem chegar à palavra “Chega!”. A grande maioria dos portugueses não sente ainda essa necessidade. Talvez porque estejam confortáveis com o acesso que o sistema, incluindo as cunhas, lhes proporciona. A não ser quando o escândalo é público e em relação a pessoas distantes de si – aí há muita indignação, a “indignação Correio da Manhã”. Falta-nos uma indignação mais cívica (isto é, manifestada também em privado e em relação a quem nos é próximo). Mas acredito que esse tipo de indignação venha a crescer – como uma re-acção. Será uma re-acção, uma acção renovada perante a Polis, porque será o reconhecimento da quebra da legitimidade do nosso sistema social – as regras são de tal forma substituídas pelas relações, que deixam de servir a maioria. Viveremos então (não vivemos já?) na chamada lei da selva. A relacionalidade, mais do que o Estado de Direito, determina a vida em coletivo. Gera aristocracias, dinastias, “monarquias” e oligarquias, interdependentes e que reduzem a necessidade de “se ter que provar”, de “dar provas” – criando uma cultura de acomodação, rentista e, portanto, dividida entre os que estão na poltrona e os que passam a vida em pé, a andar, a correr – cansados. Esta “Questão portuguesa” não é nova…continua a ser a nossa grande questão social e que ainda não encontrou resposta apesar das mais recentes tentativas em 1910, em 1926 e em 1974. Actualmente, e como sabemos, a classe política dominante nacional tem raízes marxistas, ou leninistas ou maoistas (dependendo da audiência) – e é sobretudo fundada em literatura datada e voluntarista, com pouca sofisticação intelectual, e quase sempre sem base em factos ou dados minimamente científicos. Essa esquerda fixista, que renega, sem se aperceber, um dos seus princípios, o do materialismo histórico, sempre teve dificuldades em combater a corrupção. Tal nunca foi, verdadeiramente uma prioridade política. E há aí uma certa contradição doutrinal. Por um lado, não vê na falta de consciência colectiva sobre o efeito reprodutor que a corrupção e as cunhas têm nas desigualdades sociais um elemento determinante para rupturas políticas. E, por outro lado, considera, em segredo, que a corrupção e as cunhas são um mecanismo de resistência e subversão das democracias liberais e capitalistas. Essa esquerda, de gente que pertencia à minoria dos que tinham livros em casa nos anos 60 e 70 (ou dos seus “herdeiros” – e há coisa mais desigual do que a hereditariedade?), vê a corrupção como prova do falhanço do capitalismo e das democracias liberais, e reconhece-lhe o poder de corroer o sistema que pretendem substituir. Para eles, as pessoas, destituídas de sentido crítico, são vítimas da corrupção e a corrupção é o resultado do capitalismo e do liberalismo político, a origem de todas as desigualdades. É o velho cinismo dos iluminados. Dos fins que justificam os meios. A minha proposta é inversa: o combate activo à corrupção, e também às cunhas, terá como efeito imediato, a redução das desigualdades. E tal não é feito com cacete, com leis penais. É preciso parar com reformas legísticas – pura técnica legislativa, apenas para alimentar mais uns livros e uns artigos na academia. Tal é feito também pela positiva, com maior transparência das decisões públicas, com incentivo à existência de watchdogs da sociedade civil (fortemente financiados com dinheiros públicos), e com o enaltecer de comportamentos exemplares – sem que se seja cinicamente atacado por tal ou acusado de populismo. Por exemplo: eu também recebi uma vez uma caixa bonita, preta, com letras douradas, da antiga Portugal Telecom. Tinha bilhetes de viajem de avião e bilhetes para jogos de um Europeu. Enquanto estava a negociar um contrato com a defunta PT. Eu devolvi a caixa. E nem sequer estava a desempenhar funções públicas.
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João Ribeiro-Bidaoui
Anatomia da Cunha Portuguesa
Guerra e Paz  21€

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