João Pedro Mésseder: Usando e viajando por diferentes linguagens
CRÓNICA
| Susana Cristina Sousa
Embarquei na Estação dos Líquidos. Qual Veneza, geologicamente narcisista por natureza, contemplei e apaixonei-me pelos reflexos de Luz, Mar, Infinito, Claridade, Paixão, Amor, Ironia, Humor e Jogo. Senti o Sol brilhante crepitar num estalo ofuscante de mar. No final do dia, pousei o olhar num oceano com barcos e rochedos, como quem contempla o entardecer numa tela marítima de Turner. Por entre a bruma pareceu-me entrever Glastonbury com o Tor e, sob eles, Avalon, mundo místico e iniciático. A Estação dos Líquidos – Elucidário, pelas palavras do autor, trata-se do aprofundamento de uma reflexão sobre a linguagem, a palavra e significantes e significados. Todo o livro está imbuído duma meditação metalinguística e metaliterária.
A Estação dos Líquidos é sensorial. Lê-se usando e viajando por diferentes linguagens. A pintura explícita de Millais (a intrusa de William Turner). A poesia de Herberto Helder, Giuseppi Ungaretti, Pessoa e Álvaro de Campos. O literato Juan Gelman. (Mais fundo, um marulhar – Sophia, Eugénio e até mesmo Torga e Raúl Brandão.) Consigo ver o Lobo-do-mar. Nítido. Gasto, forte. Pele carcomida pelo sol e trabalho árduos. Batráquio hercúleo esculpido por terra e mar. “Homem que se fez // à imagem do seu chão.”
Como Torga, “Entre escarpas, montes, socalcos, // (…) // e o furor do vento (…)” “(…) abrir um poço, (…)”. “(…) iniciar a transfusão de vida.”
A gravura de Hokusai. A onda, pronta a devorar sem misericórdia o Monte Fuji, traz já nas gargantas liquefeitas a composição musical de Pergolesi a ser cantada pela costa de Kanagawa.
A vida concretiza-se assim, com e como água; com e como a palavra; com diferentes sentidos, diferentes usos e diferentes significados e significantes. Eternamente móvel e impreterivelmente mutável.
Marca d’Água deixada em Veneza pelo passar do tempo. Marca d’Água deixada por Veneza em Joseph Brodsky. Literalmente, Marca d’Água deixada por Brodsky.
Viagem intemporal. Minha, vossa, nossa. Piscina das Marés no oceano. O homem. O barco “(…) que tudo faz para não cair // (…) // embora às vezes caia. // (…) // O que tenta voar sempre // no céu d’água // e nunca desiste de ser embalado // e de sonhar.”
Em jeito de remate, se o autor me permite, deixo um dos poemas mais bonitos deste Elucidário e que me trouxe à tona o filme-poema-pintura: A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos.
ÁRVORE
Vertical lugar
de fusão d’água, luz e ar
e canto de aves.
in, Estação dos Líquidos – Elucidário
-Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres|2021 (Iniciativa com 30 anos de existência que valorosamente contribui para a divulgação e promoção da poesia.)