João Pedro Mésseder: “Uma visão universalista e progressiva/progressista da História”

1-No ano do centenário de José Saramago, qual o principal legado do escritor?
R- José Saramago legou-nos uma obra muito vasta e diversa que, por isso mesmo, pode ir ao encontro de diversas tipologias de leitor: o romance inscrito numa certa tendência realista, as incursões romanescas no fantástico, o romance de moldura alegórica, as ficções longas com pano de fundo religioso e uma dimensão filosófico-espiritual, as narrativas de fundo histórico… Depois há os contos, a poesia, os textos dramáticos, as crónicas, alguns textos de pendor ensaístico, o diário, os comentários de blogue, o livro de viagens e até um livro infantil (sem falar daqueles textos breves e mais simples que foram aproveitados como base para álbuns narrativos ilustrados, vocacionados para leitores de todas as idades, incluindo os mais novos). Além dum estilo singular, as criações de Saramago revelam-nos uma escrita culta e eivada ora de ironia, graça e sentido crítico, ora de lirismo. Foi, ademais, um excelente editor (na Estúdios Cor) e um cuidadoso tradutor. Trata-se, por conseguinte, dum autor muito completo e que se distingue por uma rica complexidade: revela-nos um exemplo de permanente inquietação e busca artística, num escritor que se foi renovando e revolucionando ao longo duma longa carreira. Fez, em paralelo, um percurso de intelectual activo na sociedade e muito interventivo, nos planos nacional e internacional, para o que contribuiu decisivamente a sua condição de lutador antifascista, de democrata e de comunista, sempre de mente aberta, voltada para o pensamento crítico e propensa à questionação. Junte-se à circunstância de ter obtido o Nobel da Literatura em 1998 – o que constitui um motivo de orgulho para todos os falantes de Língua Portuguesa – o facto de Saramago nunca se ter furtado, nas suas obras, a interrogar-se sobre o seu tempo, sobre a História da humanidade, sobre a condição humana, e o facto de permanentemente nos interpelar. A sua obra permite-nos, assim, reflectir sobre as desigualdades sociais e as injustiças, sobre importantes lutas sociais e políticas, sobre o des/respeito pela dignidade humana, sobre as relações do ser humano com Deus, sobre os rumos de Portugal e da Europa, sobre a relação homem-mulher, sobre a escrita historiográfica e a escrita ficcional, sobre a criação artística, entre muitas outras temáticas. E, como muitos têm assinalado, a perspectiva saramaguiana corresponde a uma visão universalista e progressiva/progressista da História. Tudo isto faz com que a sua obra continue dotada de grande actualidade, pois as questões que suscita mantêm-se em aberto.

2-Qual é o seu livro preferido escrito pelo nosso Nobel?
R- A escolha não é fácil. Gosto muito de O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) – que alguns consideram o melhor romance de Saramago – e do modo como presta tributo a Pessoa e como retrata o período da ascensão dos fascismos na Europa, nos anos 30.  Mas a primeira paixão é sempre difícil de esquecer e essa foi Levantado do Chão (1980), cuja narração do processo de emancipação do camponês alentejano, numa prosa de grande originalidade e beleza, se conjugou, em mim, com uma paixão pelo Alentejo (paisagem física, humana e social), a qual perdura e que, no meu caso, é indissociável da música (o ‘cante’, as obras de Vitorino e de Janita Salomé…), da pintura (Pavia, Armando Alves…), da literatura (Fialho, Florbela, Manuel da Fonseca, algum Urbano Tavares Rodrigues, os poemas alentejanos de Eugénio de Andrade…) e, claro está, da memória do movimento revolucionário da Reforma Agrária, entre 1974 e 1976. O meu livro de poemas Meridionais (2001; 2007) algo deve também a todo este imaginário. Mas, apesar do especial apreço por este par de romances, acho que a minha escolha, no preciso momento deste questionário, vai para História do Cerco de Lisboa (1989).

3-Razões dessa escolha?
R- História do Cerco de Lisboa é um livro duma grande frescura, obra dum Saramago, por assim dizer, «feliz» e maduro, em que o romance amoroso, a graça e a ironia, a crítica, o afecto a Lisboa e à sua História se combinam numa prosa narrativa que para mim é especialmente sedutora. Possui personagens inesquecíveis e bem moldadas, como o revisor de texto Raimundo Silva (alter ego ficcional de Saramago?), a chefe da equipa de revisores, Maria Sara (alter-ego ficcional de Pilar del Río?), o soldado Mogueime e a sua apaixonada, Ouroana, a senhora Maria… A circunstância de nos dar a ver e a analisar dois tempos em alternância e em confronto – a época medieva da conquista de Lisboa aos Mouros por D. Afonso Henriques e o seu exército com a ajuda dos Cruzados; e o tempo de Raimundo Silva e Maria Sara, recriação ficcional da Lisboa dos anos 80 – torna também cativante este romance. Por outro lado, a profunda reflexão que nos propõe sobre a História dos vencedores e a dos vencidos; sobre a questão da «verdade» da História e da verdade da ficção; sobre os verdadeiros protagonistas dos acontecimentos históricos (os senhores ou os súbditos?, os triunfadores ou os derrotados?); sobre o conflito de religiões e de culturas; sobre o relacionamento amoroso homem-mulher; e sobre outros aspectos ainda – todos estes ingredientes fazem de História do Cerco de Lisboa um dos mais interessantes e literariamente conseguidos romances de José Saramago.
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João Pedro Mésseder, Escritor