João Pedro Mésseder: “Acho que seria outra pessoa, outro escritor se não tivesse vivido toda a vida, ou quase, no Porto”


[Fotografia: Henrique Borges]

João Pedro Mésseder acaba de publicar um novo livro: desta vez, o livro tem um perfil autobiográfico onde vai percorrendo a cidade do Porto, as suas ruas, as suas memórias. Confessa que seria outro escritor e outra pessoa se não tivesse vivido quase sempre na cidade invicta. Portanto, este é um livro especial em que o autor (re)visita o Porto e com ele vamos nós, os leitores e os amantes da cidade.
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P-O que representa, no contexto da sua obra, o livro «Porto, Maneira de Olhar (Crónicas e Memórias)»?
R-Trata-se do primeiro livro que publico de escrita essencialmente autobiográfica, entre a crónica e o texto memorialístico – evoco aqui episódios de infância, lembro familiares, gente singular, escritores, ou ainda a importância que certos filmes e músicas tiveram na minha vida. Por outro lado, são vários os textos que correspondem aos meus percursos pedonais pela cidade, do género «à descoberta de». Muitos dos leitores sentem, ao lê-los, que estão a passear comigo. E essa sensação agrada-lhes, como tenho verificado, pedem mais. Aliás a escrita autobiográfica, quando de recorte literário, sempre me cativou noutros autores, como Raul Brandão, Ruben A., Luísa Dacosta, Agustina, Pablo Neruda e muitos outros.

P-Ao ler o livro, percebe-se que a cidade do Porto é muito mais do que uma memória: faz parte da sua essência enquanto cidadão e como autor. Seriam diferentes os seus livros (os de poesia, sobretudo) se tivesse origem e uma vida noutro local?
R-Acho que seria outra pessoa, outro escritor se não tivesse vivido toda a vida, ou quase, no Porto – esta urbe tão antiga, tão literária, tão cinematográfica, com uma História tão pontuada por momentos heróicos ou pitorescos. Dou-me conta disso sobretudo em anos recentes, ao fazer certo balanço da vida e de livros que escrevi. Poderia falar do meu livro de poemas «A Cidade Incurável» (1999), cujo título é ambíguo e tanto pode remeter para o Porto como para Veneza, ou em algumas composições de «Uma Pequena Luz Vermelha e Outros Poemas» (2021). Ou ainda em livros infanto-juvenis como «Histórias a Muitas Mãos» (2007), «Porto Porto» (2009), «Guardador de Árvores» (2009), «Conto da Travessa das Musas» (2010). Mesmo em certos passos de «Tudo É Sempre Outra Coisa» (2014). Pessoas, casas, cenários, árvores, rio, mar, atmosfera…
Isto é um pouco estranho, porque houve um tempo em que o meu sonho era viajar para sul e escrever e viver no Alentejo (não por acaso publiquei um livro intitulado «Meridionais», em 2007, com poemas que já vinham de tempos anteriores). No fundo, acho que sempre oscilei entre esses dois mundos: o Porto e o seu entorno (margens do Douro, Gaia, Matosinhos e Leça) e, por outra parte, o sul.

P-Dos inúmeros lugares sobre os quais escreve neste livro, tem um Porto preferido e com especial importância para si?
R-São vários, mas há talvez três que se revestem dum significado especial. A Foz, onde tive as primeiras experiências de praia e de mar, aí até aos cinco anos (e eu não consigo viver sem ver e sentir o mar, pelo menos uma vez por semana). Hoje, claro está, olho para a Foz e parece que também estou a ver e a ouvir outros que por lá passaram: Camilo, Nobre, Pascoaes (em tempo de férias), Agustina, Eugénio de Andrade, Rebordão Navarro… Depois, há dois bairros muito especiais para mim. O da Fontinha, com a antiga Travessa das Musas, freguesia de Santo Ildefonso, onde vivi até à juventude, na casa que meu Pai construiu para a família, no início dos anos 60. Ao mesmo tempo, o Bairro Cooperativa Lar Familiar do Pinheiro Manso, na Boavista, onde vivi muitos dias, em casa de uma prima-quase-mãe, de uma tia-avó e de primas. Era para mim um lugar claro, arejado e maravilhoso (mesmo em termos de arquitectura), onde havia, além disso, animais de casa e de quintal, e a possibilidade de brincar muito em liberdade. A ambos os bairros e a episódios aí vividos dedico textos em «Porto, Maneira de Olhar». São os lugares, se não de todas, de muitas das revelações e descobertas da infância e da adolescência. Poderia ainda falar do Marquês, mas seria outra conversa, porventura mais longa.

P-A cidade do Porto mudou e muito. Mas existem ainda recantos onde a cidade da sua infância e da sua juventude permaneça?R-Sim, ainda existem. Alguns dirão que não, mas na verdade a Baixa do Porto não mudou assim tanto em relação ao que era na minha meninice. A Fontinha melhorou, felizmente para melhor, pois era um bairro com muitas «ilhas», embora tenha perdido o que era típico no lugar. Também o Marquês, no essencial, está como era. E outra freguesia de que gosto muito, o Bonfim, mantém as características principais, tendo o edificado sido muito requalificado. Essa é a zona do meu velho liceu, o histórico Alexandre Herculano, do arquitecto Marques da Silva (eu próprio habito numa casa de Marques da Silva), onde, como pode imaginar, vivi tempos inesquecíveis da juventude e da vida cívica. Por outro lado, e no que respeita às pessoas, já se sabe que a gentrificação, a lei das rendas, a «expulsão» dos moradores das zonas antigas cobiçadas pelo negócio do imobiliário provocaram danos irreparáveis na cidade e enfraqueceram a sua força cultural identitária, além de terem gerado e agravado injustiças sociais. Custa-me, por outro lado, ver a zona da Foz tão desfigurada por prédios de habitação que são, por vezes, um horror visual e arquitectónico e que foram construídos em terrenos onde, em tempos, se erguiam belas moradias. O dinheiro, infelizmente, tem mais força que um camartelo. Este potenciado por aquele.

P-Como tem sentido e vivido a «invasão» dos turistas da sua cidade?
R-Por um lado, agrada-me ver certo cosmopolitismo e movimento de gentes diversas, numa cidade que, em muitos aspectos, era um tanto fechada, há alguns anos. Por outro lado, a pressão turística, o ruído, a multidão tornam-se às vezes difíceis de suportar. E essa pressão tem gerado alterações no comércio da Baixa que são lamentáveis, com a multiplicação de lojas de quinquilharia, de «souvenirs» horrendos e de mil inutilidades, em espaços (decorados amiúde com mau-gosto) onde esperaríamos ver um comércio mais qualificado e cultivado. Neste aspecto, é o reino do «piroso» e do «kitsch», com notas tristes de terceiro-mundismo.

P-Pensando no futuro: podemos esperar mais crónicas sobre esta cidade?
R-Sim, já escrevi mais e, no futuro, penso vir a publicar uma segunda obra na mesma linha de «Porto, Maneira de Olhar» – livro que foi algo incentivado na sua edição por textos que, aqui e acolá, fui fazendo sair no Facebook e que suscitavam o agrado (e o correspondente incentivo) de muita gente. Completei o volume com outras crónicas escritas há mais tempo e algumas delas publicadas, antes, em periódicos, e com inéditos.  Ao livro que é pretexto para esta conversa, as fotografias da minha filha Inês Ramalhete Gomes vieram trazer um suplemento de beleza, além de ajudarem o leitor a situar-se na cidade. Espero que, no próximo, seja possível repetir esta bonita colaboração.
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João Pedro Mésseder
Porto-Maneira de Olhar (Crónicas e Memórias)
Asa 20,90€

João Pedro Mésseder na “Novos Livros” | Entrevistas

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