João Maurício Brás: “Viver é uma oportunidade única”

P-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro “Os Novos Bárbaros. A Moral de Supermercado”?
R- Este livro fecha uma trilogia, iniciada com O Mundo às Avessas. O Manicómio Contemporâneo, Os Democratas que estão a Destruir a Democracia e este título. A minha proposta neste trilogia consiste em levar a cabo uma reflexão crítica sobre a visão do mundo predominante no Ocidente, que considero ser o hiperliberalismo, (uma deformação do liberalismo ou um desenvolvimento inevitável, é algo que carece de resposta) e o progressismo, que é uma deformação da ideia fundamental de progresso. É necessária uma verdadeira crítica aos fundamentos da mundividiência Ocidental contemporânea, e ela escasseia. Até a esquerda deixou de o fazer ao tipo de capitalismo que temos, até a esquerda se tornou capitalista e burguesa, utilizando o jargão da própria esquerda. Este livro, como os anteriores resulta de uma urgência de falar e da necessidade de expor a ideologia terminal que adotamos. O mundo Ocidental está transformado num supermercado, onde tudo se vende e compra, onde tudo tem um preço, e pouca coisa já tem valor, e precisamente os valores estão transformados numa espécie de manicómio. Os novos bárbaros somos nós, homens atomizados, sem qualquer tipo de chão, que vivemos em permanente hiperactividade, reagindo a tudo e mais alguma coisa sem qualquer profundidade e consistência. O Ocidente acabou a odiar-se, odeia aquilo que melhor fez e pensou, odeia a história, odeia os seus valores, a sua cultura, a sua identidade. A reacção esse projecto de obsolescência do nosso modo de ser e estar, tem redundado também na adesão a posições totalmente demenciais como os Trumps e os Bolsonaros. Que são efeitos, não causas de um tempo em perda. Os democratas é que destruíram a democracia. Veja a questão ucraniana. Somos nós que negociamos com tiranos, só pensamos no dinheiro, no lucro, no negócio, sem qualquer fundo moral e ético.

P-Quando afirma: “os nossos valores são os do shopping, somos o homem do centro comercial” será apenas uma visão pessimista ou um caminho sem retorno?
R- A nossa liberdade é a da escolha do consumidor. Confundimos liberdade com relativismo, tudo se equivale, nada vale mais que nada, cada um julga que pode ser o que quer, o critério de verdade e certeza é a sua subjectividade, e vive no plano dos slogans tipo nike e adidas, “acredita e consegues”, “sonha o impossível”; “nada é impossível”, ou seja tudo ilusões de seres cada vez mais exteriores e solitários. É um lugar comum afirmar que o pessimista é o único realista. É um caminho irreversível. O mundo como supermercado, tocou uma nota fundamental do humano, a satisfação imediata do desejo, só que é uma plano do desejo menor, o não adiar a satisfação de adquirir objectos, de os acumular, de os ostentar. Não tenho a mala Vuitton, mas tenho uma imitação, não vou para a Toscânia, mas encontro um simulacro qualquer. Vivemos agora em sucessivas eras de abundância material. A nossa, a presente é muito sedutora, mas vive de uma ideia de crescimento ilimitado, estão sempre a fazer-nos salivar, mais novidade, mais produtos, tudo o que enraiza e filia é visto como resistência inadmissível, antiquada e atávica. Não soubemos preservar e atualizar o melhor de cada tempo. Por exemplo o plano moral e ético já não existe, foi substituto integralmente pelo direto. Vivemos apenas de consumo e de simulacros… O futuro se não houver qualquer catástrofe que tudo liquide, seja ambiental, nuclear, uma doença, será o tempo onde seremos a primeira espécie a colocar fim a si própria. Somos inventores de objectos, e caracteriza-nos um frenesim insano. A tecnologia alcançou um patamar inédito, em breve os interfaces entre máquinas e homens será uma realidade. Seremos subsitituidos por máquinas inteligentes, os humanos serão uma recordação de um tempo antigo. Exisitrão depois alguns humanos em zoos. Os humanos como diz Kevin Warwick serão os chimpanzés do futuro.

P-Parece existir um paradoxo entre o que afirma (“a liberdade de expressão e de pensamento não são de facto valores primordiais porque já ninguém tem nada a dizer”) e os milhões de mensagens que são publicados a cada hora nas redes sociais. Será que nos estamos a desabituar de conversar, de perguntar e de ter opinião?
R- Sim e vivemos ilusões terríveis porque apenas destruidoras. Nós estivemos tão uniformizados e homogeneizados, mas nunca tivemos a ilusão que somos tão livres e com tanto direito a uma liberdade, que agora consideramos, como o fazem os libertários, algo de absoluto e irrestrito. Há um novo paradigma que ainda está em desenvolvimento que é comunicação sem corpo, sem materialidade. Estamos isolados, no sofá, inclinados perante um ecrã, vivemos já mais tempo no mundo digital que real. Ou estamos on line ou não existimos. Este novo paradigma alterou totalmente o nosso modo de interagir. Acabamos por nos tribalizar, e ficar cada vez mais impulsivos e reactivos.As redes sociais são desprovidas de racionalidade. Algo real ou falso, equivale-se, um tema importante ou insignificante equivalem-se, somos bombardeados com estímulos (mensagens, informações) que  o nosso cérebro não consegue assimilar de um modo normal e até racional. Portanto há apenas reactividade e impulsividade. Este novo tipo de incomunicação, é totalmente desprovida de qualidade. O relativismo moral e cognitivo predomina também totalmente. A ideia da torre de babel ganha agora um realidade inusitada. Diálogo, procura de conhecimento, boa informação, distinção entre conhecimento e opinião, pensamento crítico, civilidade perderam-se e com isso perdemo-nos.

P-Outro fenómeno é o que podemos designar de ditadura do politicamente correcto que inunda abundantemente o espaço público condicionando a liberdade de expressão: no contexto da sua reflexão, como interpreta esta situação?
R- Há várias confusões sobre o conceito de liberdade. A liberdade num ser humano nunca é uma liberdade absoluta, embora uma visão hiperliberal do mundo, do mundo como mercado, sustente a ideia que a nossa liberdade individual é absoluta e irrestrita, o que é manicomial. O ser humano tem condicionantes, a nossa liberdade é limitada, e só há liberdade quando esta se articula com a responsabilidade. A liberdade não é fazer tudo o que se quer, ou ser aquilo que se pensa que é. Essas são falsificações absurdas da ideia de liberdade. O conceito de politicamente correcto tem um história, surge nos campus norte-americanos. Não vou falar dessa origem, mas dizer que o politicamente correcto é o resultado daquilo que Michel Onfray designa como um novo neo-fascismo, progressista, que é uma deformação do progresso. Proibem-se palavras, ideias, expressões, queimam-se livros, destroem-se estátuas, cancelam-se conferencistas, isto no Ocidente. Vendem-nos a ideia que nunca fomos tão livres, mas adestram-nos para um pensamento e comportamente totalmente uniformizados. Mais uma vez importa destacar que insurgir-nos com esta ditadura que nos diz o que devemos pensar, comer e fazer, nada tem a ver com entrarmos num plano delirante de mundos conspiratórias, como os que surgiram nos movimentos anti-vacinas e que vislumbram um plano maquiavélico de domínio mundial abstruso e hilariante. Infelizmente esses contestatários só legitima esse novo fascismo, que nos diz “a alternativa é serem como esses loucos desvairados”. Não, não é, é sim preciso lutar contra o politicamente correcto e a cultura do cancelamento.

P-Fala-se muito na gradual perda de importância dos jornais (e outros meios de comunicação social) ao mesmo tempo que as redes sociais poluem abundantemente o espaço público. Como podemos inverter esta situação em que, ao mesmo tempo, definha a liberdade de imprensa e condiciona a liberdade de expressão?
R- A leitura que exige alguma reflexão, mesmo mínima como a de um jornal está em extinção. Vivemos apenas online, reagindo a estímulos sucessivos, sem qualquer mediação ou aprofundamento. Como diz o título de um livro recente estamos transformados em cretinos digitais. Em breve, a leitura existirá apenas em eventos culturais. Por exemplo haverá excursões turísticas, como me diz um bom amigo, um grande escritor, onde veremos espécimes raras a ler. Ou haverá espectáulos culturais, por exemplo nos jardins da Gulbenkian, onde pagaremos para assistir a duas ou três pessoas a ler. A liberdade de imprensa já não importa, os jornais foram fundamentais, mas já não há dinheiro para pagar jornalismo de investigação e a gente que verdadeiramente tem opinião na sua área. A imprensa, salvo honrosas excepções é press-release, meras agências de comunicação. Os jornais têm de depender do poder político e económico senão não sobrevivem. Na verdade, também pouco importa, porque já muito pouca gente tem algo a dizer que valha a pena conhecer ou ler. Vivemos um tempo terminal, salvo pequenos grupos excepcionais, na ciência e na tecnologia, desaprendemos de pensar e até de comunicar. A nossa linguagem está reduzida a formulas básicas e o pensamento também.

P-Finalmente, mais uma afirmação sua: “Ignorância, manipulação e superficialidade são três características terríveis do nosso presente”. De que forma vão condicionar e influenciar o nosso futuro?
R- O futuro é uma inexistência, só podemos especular. Nada é previsível. Como nos explicou David Hume, até pelo facto de o sol ter nascido até hoje, não significa que amanhã continuará a nascer. Só uma grande catástrofe que ainda deixasse alguns sobreviventes nos faria regressar ao essencial, à importância dos valores fundamentais, de virtudes essenciais, do que é distinto no humano, do que melhor aprendemos da vivência em comum. A lucidez, os laços sociais, as virtudes cívicas, a paixão pelo conhecimento e a sensatez poderiam ressurgir. Assim, se tudo correr normalmente, resta-nos, como já referi, sermos substituídos por máquinas inteligentes, primeiro em processo híbridos, meio humano meio máquina, e por fim apenas máquinas. Voltemos à guerra levada a cabo pela Rússia de Putin. Esta podia ser uma oportunidade para percebermos que há valores fundamentais que nunca devem ser alienados. A economia deve ser moral, os preços devem ser justos, o negócio tem de ter uma base ética. A confiança é fundamental.Tudo isso está destruído. Entregamos a regulação da sociedade as regras de uma entidade mágica, o mercado, daqui a um mês, quando tudo terminar, teremos americanos, russos e chineses a reconstruir a Ucrânia e a negociar de novo entre eles. O nosso frenesim perde-nos, não sabemos parar… Nada disto é propriamente pessimismo, mas procurarmos um saber do desengano. Devemos estar, ainda assim, felizes, mas sem ilusões, viver é uma oportunidade única.
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João Maurício Brás
Os Novos Bárbaros. A Moral de Supermercado
Opera Omnia  15,90€

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