João Cerqueira: “Uma história sobre a natureza humana”
1-O que representa, no contexto da sua obra, o romance «Perestroika»?
R- Perestroika: olho por olho, dente por dente é o meu romance mais ambicioso por várias razões: tem trinta e oito personagens que evoluem num arco temporal de catorze anos, aborda um tema – a democratização dos países comunistas e o fim da Guerra Fria – que mudou o mundo e, devido ao expansionismo bélico de Putin e à invasão da Ucrânia, tornou-se actual uma vez que sem a Perestroika Putin e outros populistas nunca teriam alcançado o poder. Além disso, uso a arte – Cristo expulsando os vendilhões do Templo de El Greco – como espelho das mudanças políticas e sociais. E, por fim, a pergunta de Pilatos a Jesus – «O que é a verdade?» – atravessa todo o romance, entra na cabeça de vários personagens que lhe dão respostas distintas e fecha a história numa reviravolta que, espero, irá surpreender o leitor. No entanto, mais do que um romance político é uma história sobre a natureza humana que aborda temas comuns em toda a literatura: a ascensão e a queda, a luta pelo poder e pela sobrevivência, a busca da verdade, o amor, a vingança e a possibilidade de redenção. Por isso, a acção do livro, em vez de se passar num país imaginário a que chamo Eslávia, poderia decorrer, com as devidas alterações, em qualquer época ou lugar da História, no passado ou no futuro. Porque, quer uma mulher medieval ou um homem que vivesse numa colónia em Marte iriam querer saber quem eram os seus pais ou, então, vingar-se de quem abusara deles. Daí, o olho por olho dente por dente do título. Porém, como referi atrás, é no final do livro que está a maior aposta em relação a tudo o que escrevi até agora.
2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-Tenho como princípio basilar na minha escrita ser original, quer na forma, quer no conteúdo. Escrevi o único romance português sobre o 25 de Abril e a situação política actual – 25 de Abril, corte e costura – e, atrevo-me a pensar, que sou dos poucos autores actuais que usa o humor e a ironia. Assim, escolhi o tema da Perestroika pois não há praticamente nenhum romance no mundo que aborde o tema – encontrei um livro na Amazon chamado Perestroika in Paris. Então, como também tenho conseguido publicar os meus romances em Espanha e nos Estados Unidos decidi tratar este tema histórico esquecido. Foi uma boa aposta pois o manuscrito em inglês foi finalista de um prémio na Grécia e de outro na Inglaterra, recebi quatro propostas para publicação de editoras americanas, uma inglesa e a Funambulista (Espanha) já está a traduzir o manuscrito. Aliás, o apoio do meu editor espanhol – Max de la Cruz – foi muito importante para começar a escrita deste livro. Quando fui a Madrid apresentar La Tragedia de Fidel Castro tive muitas conversas com ele que me deram a confiança necessária para começar. Mas o mais importante foi ele ter-me dito, numa visita ao Museu Thyssen-Bornemisza, isto: «Vais escrever cada vez melhor». A ideia já germinava na minha cabeça há algum tempo, mas precisava de um empurrãozinho para começar.
3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R- Estou a escrever há uns meses um romance que se passa realmente no futuro: uma história de fim do mundo ou pós-apocalítptica. Este tema começa no Antigo Testamento com o Dilúvio que destrói a humanidade e continua, sob forma fantástica, no Novo Testamento com o Apocalipse de João e a segunda vinda de Cristo após a grande batalha entre o Bem e o Mal. No século XX, a principal causa do fim do mundo nos romances era uma guerra nuclear ou uma invasão extraterrestre. Neste século, o fim do mundo resulta sobretudo das alterações climáticas e das pandemias. Eu prefiro não escolher uma causa para o apocalipse – a maioria dos sobreviventes não tem a certeza do que aconteceu – porque isso implica uma base científica sólida. O livro poderá chamar-se A Grande Catástrofe, ou o Bibliotecário do Fim do Mundo, ou A Mulher do Fim do Mundo. Este último título ganha força a cada linha que escrevo. O livro talvez termine com essa mulher grávida como símbolo de esperança para o renascimento da humanidade. Passa-se quarenta e oito anos depois desse fim do mundo e os personagens são os sobreviventes que ora lutam entre si, ora cooperam. As principais influência deste romance são os livros A Estrada de Cormac McCarthy, The Postman de David Brin (um grande livro), Plop de Rafael Pinedo (outro livro extraordinário) Estação Onze de Emily St. John Mandel, A Última Fome de John Christopher, A Dança da Morte de Stephen King (uma desilusão) e, claro, a série The Walking Dead (o maior tratado sobre o que será o fim do mundo). Como referi noutra entrevista, a grande dificuldade é entrar na cabeça de personagens que nunca existiram. Sabemos como pensava o homem medieval, mas nem os cientistas, nem os historiadores podem dizer como irá pensar alguém que sobreviva ao fim do mundo. Por um lado, é influenciado pelos vestígios da civilização, como os livros, mas, por outro, a lei da sobrevivência leva-o a comportar-se como um ser primitivo. E se em Perestroika há o quadro de El Greco que atravessa a história, neste novo romance é um quadro de Caravaggio que induz a mulher do fim do mundo à revolta contra um tirano que criou uma cidade de escravos.
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João Cerqueira
Perestoika
Alêtheia 18€