João Carlos Melo: “As pessoas que dela sofrem, bem como os seus familiares, têm sido igualmente maltratadas.”

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Reféns das Próprias Emoções»?
R-Interesso-me por esta doença há já mais de trinta anos, desde que dei início à minha prática clínica. Fui constatando ao longo do tempo que esta é das mais incompreendidas e maltratadas de todas as doenças psiquiátricas e que sobre a mesma ainda se mantêm muitos mitos, mal entendidos e atitudes estigmatizantes, sobretudo do interior da própria psiquiatria. Mas não é apenas a doença. Foi neste contexto que escrevi o presente livro, e fi-lo ainda com o propósito de dar a conhecer a doença, dar voz a todos os que sofrem com ela e ainda oferecer-lhes alguma esperança.

2-Esta é uma obra sobre pessoas com uma ainda pouco conhecida perturbação borderline da personalidade: de que falamos em concreto?
R-Esta doença, designada oficialmente por “Perturbação Borderline da Personalidade”, caracteriza-se sobretudo por grande instabilidade afetiva (mudanças frequentes e muitas vezes bruscas e imprevisíveis do humor e do estado mental); desregulação das emoções (com crises de descontrolo e de raiva); impulsividade; vazio interior; dificuldades na identidade; comportamentos autolesivos; atitude autocrítica; emoções muito dolorosas, como vergonha, medos e raiva; desespero; dificuldades muito perturbadoras nas relações interpessoais (sobretudo nas relações mais íntimas); angústias (de rejeição, de separação e de abandono), pensamentos recorrentes sobre a morte e o suicídio; tentativas de suicídio. As pessoas afetadas por esta doença são hipersensíveis; muito facilmente entram em profundo sofrimento com situações que desencadeiam angústias intensas de rejeição, abandono e separação, e também com atitudes de injustiça e de invalidação dos seus sentimentos mais profundos e verdadeiros – serem, desmentidas, ignoradas ou atacadas nos seus sentimentos mais genuínos. Quando isto acontece, dá-se uma desregulação das suas emoções, desencadeando-se angústia, desespero, descontrolo e raiva. O sofrimento é tão insuportável e incontrolável que a pessoa, não conseguindo controlar as emoções, adota “soluções” automáticas para o efeito: autocrítica cruel, comportamentos autolesivos (como cortar-se, queimar-se ou magoar-se de muitas maneiras), críticas e exigências aos outros, consumo de substâncias tóxicas, e tentativas de suicídio, entre muitas outras. A este propósito, convém salientar que cerca de 75% destas pessoas fazem tentativas de suicídio (que não são “chamadas de atenção”, embora muitas vezes funcionem como um apelo); e que 10% acaba por morrer por suicídio! Mas é importante notar dois casos particulares. Há pessoas que manifestam os sintomas e os comportamentos da doença apenas nas relações mais íntimas, parecendo não ter nenhum problema em muitas situações sociais e profissionais. E há outras que têm as mesmas dificuldades, mas não as manifestam. Costumam chamar-se a estas “quiet borderline”. Em qualquer dos casos, o sofrimento está lá. A pessoa sofre em silêncio, magoa-se em silêncio e está presa na sua solidão.

3-Esta doença tem uma grande expressão na sociedade portuguesa?
R- Não existem no nosso país estudos epidemiológicos que nos permitam saber ao certo. No entanto, tendo em conta os estudos de outros países – que consideram uma incidência de 2% -, podemos estimar que em Portugal existem mais de 200 000 pessoas afetadas. Para termos uma noção mais concreta da dimensão desta doença – que constitui um grave problema de saúde pública – é importante notar que doenças tão conhecidas como a Esquizofrenia ou a Doença Bipolar, têm uma incidência de apenas 1%. Há ainda outro problema: esta doença é subdiagnosticada, o que leva a que muitas pessoas sejam diagnosticadas com “depressão”, “ansiedade” ou “doença bipolar”, por exemplo; e, muitas vezes, são apenas diagnosticadas – errada e injustamente – como tendo “mau feitio” ou “mau caráter”.
__________
João Carlos Melo
Reféns das Próprias Emoções. Um retrato íntimo das pessoas com personalidade borderline
Bertrand  16,60€

João Carlos Melo na “Novos Livros” | Entrevistas

COMPRAR O LIVRO