João Barrento | A Chama e as Cinzas

1-De que trata este seu livro, A Chama e as Cinzas?
R- Tratar, tratar, não trata… A matéria, tal como a vi e
vejo, suscita-me mais interrogações do que um tratamento objectivo e factual.
Interessou-me sobretudo entender os caminhos e os desvios, os grandes e os
pequenos, os visíveis e os menos visíveis da literatura portuguesa entre os
anos da Revolução (indo por vezes um pouco atrás) e o início do novo milénio.
Não tanto dando a palavra a esta ou àquela obra, a este ou àquele autor, mas
procurando entender o pano de fundo histórico, social e ideológico – também
mais estritamente literário, claro – em que as obras (romance, conto, poesia)
vão nascendo. Os factores estruturais que as explicam, e por vezes interligam,
os contextos que possibilitaram o seu nascimento e explicam a sua natureza e o
ar em que respiram.
De facto, com o fim do antigo regime, a literatura
portuguesa vai-se renovando por caminhos antes impensáveis, num contexto que
lhe fornece simultaneamente matéria portuguesa, europeia e universal, histórica
e actual. E a minha abordagem, que resulta de uma posição sui generis que é a
minha em relação a esta matéria (e já o era na Feira do Livro de Frankfurt em
1997, onde tudo nasceu numa série de conferências para público alemão), é a um
tempo subjectiva (assisti ao desabrochar e crescer dessa nova literatura, pelo
menos desde os anos sessenta, e conheci pessoalmente a maior parte dos
autores), crítica e selectiva, sem deixar de ser já histórica.
O que o livro pode eventualmente trazer de mais revelador
hoje não se prende com os «grandes géneros» (o romance, em particular o de
matéria histórica, por onde começo) nem com a poesia, uma forma de expressão
sempre vista como quase «natural» neste país, mas com os dois capítulos
intermédios, em que trato de filões mais arredados, mais problemáticos ou mais
esquecidos, como são os de uma literatura no feminino (não abordada pelo lado
de uma qualquer via feminista, não pela exploração de uma «metafísica dos
sentimentos no feminino», banal e kitsch, melíflua ou violenta, como acontece
hoje na novela televisiva e em algumas mulheres-ditas-escritoras, mas antes
pelo trabalho com a linguagem e as formas); e do conto, género por vezes visto
como menor, mas que, no período tratado, tem uma presença forte e original.
2 e 3- Como observador atento da nossa literatura, quais os
principais acontecimentos e tendências que identificou nos últimos anos? Nos
últimos anos, têm surgido muitos novos autores: como analisa esta situação?
R-Junto os dois pontos, por duas razões: porque eles são
interdependentes e se completam, e porque não terei tanto a dizer sobre eles. Num
último capítulo deste meu livro, em que procuro pensar a situação global do
fazer literário – da escrita propriamente dita, não da «literatura» e do seu
grande espectáculo – em Portugal nos anos depois da viragem do século,
caracterizo estes nossos tempos – mas não necessária e indiscriminadamente a
escrita que neles vai acontecendo! – como «tempos de indigência», ecoando uma
célebre linha de um poeta alemão clássico. E isso significa, como aí escrevo,
que vivemos um tempo de «crise do literário», de uma «presença não actuante» da
literatura neste tempo em que nos coube viver (e, para alguns, ainda pensar).
Que há muita gente a escrever, é um facto (negócio e fama oblige!), como é um
facto a sua vontade de presença mediática e nos arraiais do marketing literário
contemporâneo. Mas o que hoje mais me interessa acontece quase sempre a outro
nível, em pequenos recantos, editoras marginais (ou mais originais). É aí que
as promessas desabrocham, novamente muito mais na poesia do que na prosa. Esta,
a prosa actual, resumi-a recentemente, numa entrevista, a algumas tendências
essencialmente «realistas» (o modelo mais esgotado da literatura!), com um ou
outro salto para o «reino de Sherazade», como Eduardo Lourenço chamou um dia ao
filão fantástico de algum romance e conto. Limito-me a enumerar esses vários «realismos» (que acreditam
ainda que a literatura se faz de conteúdos, de historietas pessoais e de
sensacionalismos mediáticos), esperando que por detrás deles alguns adivinhem
nomes:
1. O R.U.T. = Realismo urbano total (de longa tradição)
2. O R.S.T. = Realismo sentimental total (género frequente
em jornalistas-escritoras)
3. O R.R.n.T. = Realismo rural (não) total (a nova versão do
provincianismo português, de que já falava Pessoa)
4. O R.F.I. = Realismo fantástico de imitação (a grande
fábrica do oportunismo)
O resto – que anda por aí em alguns dos novos e novíssimos –
é o que verdadeiramente conta, e eventualmente contará num futuro mais ou menos
próximo: o trabalho criativo na linguagem, a fuga aos modelos mainstream, o
olhar crítico e o consequente distanciamento da doxa e das ideologias
dominantes.
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João Barrento
A Chama e as Cinzas-Um Quarto de Século de Literatura
Portuguesa (1974-2000)

Bertrand Editora, 14,40€