Joan Didion: “Noites Azuis” é um desassossego
CRÓNICA
| Susana Cristina Sousa
Blue Nights é o título no original. Blue, em inglês, é igualmente um adjectivo: azul. Contudo, essa língua de “origem bárbara” acrescenta-lhe, a nível informal, o significado de triste, deprimido.
Não é por acaso que os Blues, música lenta e triste, caracterizada pelo uso de notas baixas e com construção repetitiva – espécie de lamento – nasceu dos escravos sulistas afro-americanos como modo de expressar o saudosismo pela terra mãe e queixume perante a vida pungente a que eram forçados.
Chegam-me agora, não sei bem porquê, trechos misturados duma letra de Elton John:
Don’t wish it away
Don’t look at it like it’s forever
Between you and me I can honestly say
That things will only get better
(…)
And I guess that’s why they call it the blues
Time on my hands could be time spent with you
Nana nanana
Nananana
And I guess that’s why they call it the blues
(…)
And while I’m away
Dust out the demons inside
NA NA NA hide
(…)
Wait on me girl
Cry in the night if it helps
[…] I simply love you
More than I love myself
And I guess that’s why they call it the blues
Time on my hands should be time spent with you
Laughing like children, living like lovers
Rolling like thunder under the covers
And I guess that’s why they call it the blues
Porém, Noites Azuis não são tristeza. São medo. Déjà-vu de “(…) memórias (…) que já não queremos recordar.”, muito menos, reviver. São (auto)biografia póstuma, antes mesmo de chegar a morte.
Existe a vertigem junto do precipício e, depois, há as Noites Azuis:
– reabrir a carne rasgada anteriormente (no preciso local da sutura que acreditávamos cicatrizada);
– revisitar a vida que passou (o efectivo salto no abismo do qual nos julgávamos resgatados);
– rever quem amámos e que continuamos a amar (o envelhecer, definhar e desaparecer de quem nos criou e/ou dos que nos escaparam demasiado cedo); e antever, sem ciência oculta ou sobrenatural, a vida que nos espera findar (bomba-relógio: tic-tac-tic-tac—tic…tac—tic… tiiiiiiiiiiiii…….).
Na badana do livro lê-se: “O Ano do Pensamento Mágico foi finalista do Prémio Pulitzer e valeu-lhe o National Book Award em 2005. Noites Azuis é a continuação de O Ano do Pensamento Mágico.”
Terei iniciado a leitura pelo “capítulo final”? Talvez não…
Noites Azuis cansa.,Cansa pela repetição. Cansa pela repetição lexical e factual. Cansa pelos constantes ziguezagues circulares de quem não reconhece mais a sua rua e, caminhando sem sair do sítio, deixou de saber onde está. Cansa pelas mesmas e recorrentes analepses e prolepses que, de facto, já ocorreram. Noites Azuis é, na verdade, um oximoro da vida que sonhámos e imaginámos. Entope-nos até ao gargalo. Esgota-nos.
“A vida muda rapidamente.” Certo. Todos sabemos.
“A vida muda num instante.” Quem não passou por isso?
“Sentas-te para jantar e a vida, como a conheces, termina.”
Pode não ser agora. Pode não ser neste preciso momento, em que me sento para jantar uma francesinha vegetariana (!!) regada com molho à base de banha de porco (!!!), mas acontecerá com toda a certeza. Inevitável como os impostos. Poderá ser mais tarde ou já amanhã. Poderá ser depois de amanhã ou depois de depois de amanhã.
Sim, pode ser instantâneo. Pode ser também um diluir expectável, mas sempre, sempre prematuro. “Um dia estamos absorvidos com vestir-nos bem, seguir as notícias, mantermo-nos a par, aguentar, aquilo a que podemos chamar estar vivo; no dia seguinte, não estamos.”
Noites Azuis chega a ser indigesto, no sentido de confuso, difícil de aprender e assimilar e também no sentido orgânico de difícil digestão, … como a vida.
Perda, solidão, envelhecimento, medo, abandono.
Medo de ser deixado para trás, medo de ficarmos para trás ou, então, de tudo ficar para trás e sermos nós quem permanece. Nós e a vida. Nós e a morte. Nós e a vida que se esfuma e cujas memórias não conseguimos resgatar ou Nós e a vida que é memória que já não queremos relembrar.
“E se não estivesses em casa quando o doutor Watson ligou…
E se não conseguisses encontrar-te com o doutor Watson no hospital…
E se tivesse havido um acidente na autoestrada…
Que me aconteceria então?”
Noites Azuis é Vida e esperança.
Noites Azuis é Morte como ladra obscura ou como bálsamo para aplacar dores, dúvidas e medos.
Noites Azuis é Desassossego –
– é vida e morte e vida e morte… em permanente potência. Jogo da Roleta Russa. Roda ininterrupta que gira incessante e na qual podemos entrar a qualquer momento. Na qual já entrámos e somos obrigados a jogar, queiramos ou não.
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Joan Didion
Noites Azuis
Editora Cultura 15,95€