Javier Cercas: Um livro contagiante
CRÓNICA
| agostinho sousa
A partir de uma entrevista do autor, enquanto jornalista, ao filho de Rafael Sánches Mazas, intelectual, escritor e destacado dirigente falangista espanhol, surge a menção da estranha forma como o pai deste tinha conseguido sobreviver a um fuzilamento em vésperas da entrada das tropas de Franco na Catalunha, no término da Guerra Civil Espanhola, o que vai avivar a curiosidade de Cercas.
Depois de ter sido feito prisioneiro pelas tropas republicanas e condenado a um fuzilamento coletivo com outros correligionários, num ato desesperado dos «rojos» perante a derrota iminente pelo avanço das tropas franquistas, Mazas, mesmo ferido, consegue sobreviver e fugir para uma floresta próxima. Aí é prontamente descoberto por um anónimo soldado revolucionário que, surpreendentemente, lhe poupará a vida.
Este momento enigmático, de troca de olhares entre dois homens, representantes das duas fações de uma violenta e mortífera guerra civil, será o maior motivo para o autor regressar a uma atividade que estava adormecida para si: a de escrever um livro, um «romance real», como o passa a denominar e isso levá-lo-á a um trabalho exaustivo de pesquisa histórica e factual.
Ao longo da escrita existem alguns extraordinários acasos, como o brilhante encontro entre Cercas e um famoso e conhecido escritor, em resultado de outra entrevista que terá de fazer como jornalista que nada tem a ver com o livro que estava a escrever, que o motivará a novas pesquisas e a novas descobertas.
O livro tem essa qualidade de apresentar um «romance real» sobre uma guerra, ainda mais tormentosa por ser entre fações da mesma nacionalidade, com as visões de intervenientes das duas partes desse conflito que, apesar de algo distante no tempo, continua bem presente na memória dos seus sobreviventes e descendentes.
É um livro contagiante, com alguns felizes imprevistos e com um final muito bem escrito, emotivo e motivador como reflexão sobre o (grande) valor de tantos (incógnitos) combatentes que deram o melhor das suas vidas, senão mesmo a própria vida, pelos seus ideais, pela liberdade e pela sociedade que hoje outras gerações podem usufruir.
Mazas ainda tem o seu nome numa das ruas de Bilbao, porém tantos combatentes nem essa marca tiveram direito, mas como se congratula um incógnito desses magníficos homens, personagem surpreendente e sobrevivente a muitas guerras: enquanto estiver vivo recordará tantos outros seus correligionários que sucumbiram, repetindo os seus nomes em voz alta, homenageando-os.
Espinho, 25 de outubro de 2021
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Javier Cercas
Soldados de Salamina
Livros do Brasil 8,80€