Henri James: sem Tarzan, com Jane

CRÓNICA
|Célia Gomes

É na selva, com o seu ambiente denso e sombrio, que  as feras esperam, vigiam e atacam. Não será a nossa vida uma selva luxuriante e perigosa, cujas feras são as nossas emoções e sentimentos? Selva onde amiúde se ouve um grito de Tarzan que surpreende os  animais ferozes e surge uma Jane só e desejosa de aventuras? Na selva de Henry James não há Tarzan, talvez haja uma Jane, e imperem  perigosas feras do egoísmo e da inquietação. Neste mato,  também avistamos um poço onde, recordando Neruda, «a claridade está presa» e onde flutua  a cegueira. Como escreveu Saramago, «a pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente». E é deste tipo de cegueira que padece John Marcher, o protagonista desta novela, que deixou de viver o seu grande amor e a própria vida à espera da «coisa» que, confiava ele,  o destino lhe reservava  – «tinha a sensação que estava guardado para qualquer coisa rara e estranha, possivelmente prodigiosa e terrível que lhe haveria de acontecer mais cedo ou mais tarde, que era um pressentimento». E não será esta novela de James uma parábola? Em  determinada altura da nossa existência não aguardaremos por alguma coisa que nos é destinada? Uma espécie de milagre com relâmpagos flamejantes  que iluminarão a nossa vida, ou pelo menos as noites de insónia? E enquanto esperamos, inertes, passivos, demasiado absortos, perdemos a própria  essência da vida ou o amor da vida,  aquele que acontece uma vez como astro luminoso que passa e não deixa rastro. E a essência da vida é agir, é  estar presente, é  intuir. E John Marcher não agiu (tempestivamente), não intuiu, não soube navegar no amor apesar de ter consciência que ele e May Bartram «já não estavam, em suspenso junto à nascente do rio, mas decididamente a bordo do mesmo barco, descendo pela rápida corrente». Mas de que lucrou estar a bordo do mesmo barco se não conseguia remar?  Quando viu May,  naquela tarde,  o seu «rosto começara por perturbá-lo vagamente de uma forma agradável» e «mal ouviu a sua voz a distância foi preenchida». Talvez fosse Eros a atuar proporcionando o  reencontro com a mulher que tinha conhecido há  dez anos e com quem tinha partilhado o poderoso segredo da «coisa». E «este encontro parecia demasiado bom para ser desperdiçado; e assim ficaram reduzidos mais uns minutos, a perguntar-se porque razão este reencontro tinha demorado tanto tempo a concretizar-se». Não há acasos, há apenas destinos invisíveis e May Bartram soube naquele reencontro vaticinar um possível destino. Marcher apenas seguiu o destino do  seu egoísmo que cravou os dentes de sabre no destino da própria May, sem a rasgar, sem a largar, sem fazer sangue, mas matando-a lentamente e arrastando-o a ele próprio para as cinzas da vida. May não queria ser testemunha da «coisa», esta apenas era o pretexto para algo mais sublime. Ela não pretendia ser levada à ópera várias vezes por semana, ela cogitava cantar a sua própria música. Ela não queria, após a ópera, servir  a Marcher uma «ceia cuidadosamente preparada». Ela desejava ser a própria ceia e, em vez de se sentar à mesa, imaginava  deitar-se, porventura, na própria mesa, bramindo a toada do amor! Mas ele nada via, nada pressentia e mantinha o comportamento de um irrepreensível e formal cavalheiro. (Caro Marcher, mulheres apaixonadas não desejam formalismos!) Todo o comportamento de May é uma declaração de amor e  o de  Marcher é, ao invés, uma não declaração! Prestes a findar o  livro, apetecia-me abanar Marcher, acordá-lo dessa sua sofreguidão narcísica e despertá-lo para a luz  do amor de Bartram,  «um frio encanto do seu olhar alastrara ( …) a todo o resto da sua pessoa ( …) e era como se a luz dela se pudesse apagar a qualquer momento e ele a tivesse de aproveitar ao máximo». Não a aproveitou e o desfecho foi insípido, «aquilo porque ele tinha esperado não aconteceu». Porque ele não viu, não sentiu e a centelha de May apagou-se. E foi no apagão que é a morte, que Marcher sentiu a solidão, que se esboroou o egoísmo que tinha nutrido a sua inanição pela vida. Foi ao olhar para a lápide fria que sentiu o gelo da sua existência «e deu por si a pensar se não deveria ter começado a atuar, muito antes». Rumi escreveu que «pela ferida entra a luz». E foi pela ferida rasgada pela dor da perda que penetrou a  luz do arrependimento, do quanto havia escarmentado a vida e o amor.  E nós, leitores, acusamos este egoísta de ser um asno. Mas não seremos todos nós uns asnos, que alvejados por flechas de culpa, medo, cobardia ou comodismo deixamos de viver coisas raras, estranhas, comoventes e maravilhosas? Talvez. E é precisamente aqui que se esconde a pérola que esta novela encerra.
Fechei o livro e sorri lembrando o poema «Instantes», e pensando no que faria Marcher se «pudesse viver novamente a  vida». Talvez, também ele, «relaxaria mais» e «contemplaria mais amanheceres». Amanheceres, quiçá, iluminados pela aparição de Mary e pela luz do amor. E acuse-se quem não almeje ser aclarado por esta resplandecente  luz.
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Henri James
A Fera na Selva
Publicações D. Quixote  9,90€

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