Han kang e um livro que nos devora

CRÓNICA
| Célia Gomes

A Vegetariana é um livro que nos devora. Devora-nos a alma com a sofreguidão com que muitos devoram carne. Carne pelo meio da qual circula sangue. Nesta história, circula nos vasos sanguíneos das palavras, que   enchem páginas que não carecem  de transfusões. Um livro que se divide em três partes, narradas por três familiares   diferentes: o marido, o cunhado e a irmã de uma mulher, a vegetariana que tresanda a carne viva, a sangue e a rugido daqueles que só os animais carnívoros são capazes de bradar. Mas também cheira a tinta, a tinta de flores pintadas. Flores que não murcham regadas pela água de perversão e desejo . Qualquer restrição alimentar é um protesto, um grito. Aqui um grito contra uma vida pautada pelo excesso de autoritarismo, pelo excesso de domínio masculino, numa sociedade Sul Coreana (não só mas também…) que desvaloriza a mulher e a molda,  «correspondendo às minhas expetativas, ela mostrou ser uma esposa absolutamente comum, que encarava as coisas sem desagrado , nem frivolidade. Era uma mulher de poucas palavras e que por muito tarde que eu chegasse a casa nunca discutia comigo».« Era», pois  a mudança operou-se   a partir  de um sonho. Um sonho de carne que eclodiu num eco de liberdade e transformou a protagonista. Transformou-a emocional e fisicamente «é o teu corpo, podes tratá-lo como quiseres. É a única coisa em que és livre de fazeres o que quiseres». Daí o cerrar os dentes para a carne que o pai lhe tentava empurrar   no perfeito circo de um almoço de família em que ela era a fera e o domador era o pai chicoteando o garfo em direção à sua boca. Mas os espetáculos de circo nem sempre acabam com o aplauso do publico. Neste caso acabou em pulsos cortados e em sangue que manchou o rígido conservadorismo familiar. Um livro muito visual em que Han Kang usa e abusa de metáforas e de imagens impregnadas de poesia, revelando-nos uma Yeong-hye  com uma náusea semelhança à de Álvaro de Campos, «que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o», Mas mais do que ingerir comida ou universos ela desejava   ser árvore silenciosa. O mais que conseguiu foi uma amálgama de flores  pintadas no seu corpo nu. Flores da noite e flores do dia. Flores ávidas de polinização. Polinização cruzada   que Han Kang tão bem descreve num relato impregnado de erotismo e sensualidade. Dá-se então o orgasmo da revelação «pensava que era tudo por causa da carne. Achava que bastaria deixar de comer carne e os rostos não voltariam a aparecer. Mas não resultou. Mas agora já não tenho medo». Há sempre uma altura em que deixamos de ter medo e a vida ou abre cortinas ou as cerra. No caso de Yeong -hye não as abriu, antes abriu o espaço para próspera loucura. Loucura que a irmã, In-hye, narra. Reflexões seguidas de reflexões. Do « e se» que a todos atormenta. Do sofrimento de Yeong-hye do desejo de  ter caule, folhas,  sol e  húmus. Se este livro tivesse sido escrito por Kafka com certeza que se daria esta metamorfose. Mas como não o foi, continuamos a ter sangue em vez de seiva. hospital em vez de raízes e folhas.
Um livro provocador, inquietante, nauseante sem ser enjoativo.  Quando acabei de o ler agradeci o não ingerir carne há mais de vinte anos e  não gostar de entrar em  talhos . Um talho durante o dia é sempre um local de crime e um hospital psiquiátrico também.
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Han Kang
A Vegetariana
D. Quixote 16,60€

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