Grácia, um símbolo de fé

Nasceu Beatriz mas foi como Grácia que ficou conhecida e, séculos depois, continua a ser um exemplo a recordar para muitos. Mesmo os que não são judeus, como ela o foi de forma tão fervorosa, respeitam a coragem com que enfrentou tantos e tão fortes poderes – desde logo o da Inquisição, cujos tentáculos a obrigaram a percorrer meio mundo na ânsia de escapar-lhe e de em liberdade professar a sua fé.
Esta mulher do século XVI, que o ódio dos Reis Católicos aos judeus fez nascer em Portugal uma década depois de as famílias dos seus pais terem atravessado a fronteira devido ao Decreto de Expulsão, foi uma figura ímpar que ao longo dos tempos tem alimentado histórias e mitos. Muito se escreveu já sobre a lendária mulher de dupla vida: a cristã-nova Beatriz de Luna e a judia Grácia Nasi, símbolo dos marranos da Península Ibérica.
As referências à sua vida e obra vêm desde 1929, quando Alice Fernand-Halphen a biografou pela primeira vez na “Revue de Paris”. Mesmo em Portugal, muitos foram os leitores de “A Senhora”, o célebre romance de Catherine Clément baseado na mulher poderosa, de personalidade tão forte quanto a sua fé. Mas é uma nova biografia que nos traz novamente Grácia, precisamente quando se assinalam 500 anos sobre o seu nascimento. Trata-se de “Grácia Nasi – a judia portuguesa do século XVI que desafio o seu próprio destino”, da autoria de Esther Mucznik, vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa e uma estudiosa das questões judaicas.
O livro tem objectivamente um carácter de obra de divulgação, escrito com recurso a uma bibliografia extensa e evitando tanto quanto possível preencher com especulações as lacunas sobre a vida de Grácia. No entanto, e apesar desse cuidado, é notório, aqui e ali, um certo espírito laudatório, tanto pela mulher como pelo que representa enquanto símbolo religioso – o que é claramente afirmado, pois Mucznik assume a sua condição de judia e confessa a sua admiração pela biografada. “Confesso que o meu interesse por Grácia se deve muito ao símbolo que representa. (…) Grácia tornou-se o símbolo do sofrimento dos marranos, do misticismo messiânico que os habitava, da sua fé inquebrantável e ao mesmo tempo do pioneirismo económico que fez deles os precursores do capitalismo global”, escreve Esther Mucznik na introdução, para concluir: “Este livro é inteiramente devedor das pessoas que estudaram, investigaram e imaginaram a sua vida. Trago apenas mais um olhar, desta vez de uma mulher do século XXI, também comprometida com o destino do seu povo.” Ou seja, com verdade mas também com convicção. Quem ler o livro não poderá dizer que foi enganado.
Num estilo sóbrio e sem floreados literários, a autora relata, ao longo de cerca de duas centenas de páginas, a vida da judia portuguesa que, como é sublinhado na contracapa, “com uma fé inquebrantável e uma personalidade de ferro não teve medo de desafiar homens, papas, reis e o seu próprio destino”. Poderá parecer uma afirmação exagerada, mas verificar-se-á que não é. Realmente, esta mulher que desde criança percebeu a necessidade de (con)viver com duas identidades distintas e uma delas secretas – uma necessidade de que dependia não só a sua vida como a da família – veio a revelar uma força de vontade e uma capacidade de resistência absolutamente incomuns, tanto mais se nos lembrarmos de duas variáveis preponderantes: a época e a sua condição de mulher.
Pelo contrário, tem a sua favor uma fortuna colossal, de que se torna herdeira aos 26 anos, quando fica viúva, e única administradora poucos anos depois, quando também o cunhado morre. Então como agora, o dinheiro tinha um poder e uma influência enormes.
Grácia demonstrou ser uma mulher de negócios de primeira linha, dominando um vasto império comercial que ia da pimenta e especiarias ao açúcar, vinho, algodão, frutos secos, pau-brasil, marfim, pérolas e pedras preciosas. Mas não só. Desenvolvia ainda um florescente negócio bancário através do qual emprestava dinheiro a várias cortes e clandestinamente mantinha uma rede de transporte de capitais de judeus marranos que tentavam fugir da Península Ibérica e alcançar destinos menos perigosos para os da sua fé.
Com todo o poder económico que detinha, Grácia negociava com reis, imperadores, Papas, mercadores e diplomatas, directamente ou através do sobrinho Joseph (com quem alguns insinuam ter tido uma relação amorosa).
Esther Mucznik descreve-a como uma verdadeira empreendedora, à semelhança dos judeus sefarditas que iniciaram a globalização e o capitalismo. Uma mulher que governou com mão-de-ferro quer os negócios quer os assuntos familiares, e que percorreu a Europa (passando por capitais do poder como Veneza e Antuérpia) até chegar ao Império Otomano, onde finalmente se estabeleceu graças à possibilidade de poder, finalmente, praticar abertamente a sua fé, sem medo de represálias ou perseguições.
A autora lembra a amargura que terá sido a obrigatoriedade de manter secreta a fé, numa mulher para quem a religião raiava quase a obsessão. E também, mais tarde, a dificuldade de se adaptar a uma comunidade com hábitos diferentes, habituada a praticar sem constrangimentos os ritos e costumes inerentes ao judaísmo.
Talvez por tudo isso – por nunca ter esquecido quem era, o que viveu e sofreu –, ao estabelecer-se no Império Otomano Grácia Nasi dedica-se ainda mais (ou de forma mais intensa e aberta) a ajudar outros marranos e cristãos-novos a escapar à Inquisição e a apoiar os mais necessitados, falando-se mesmo da existência de uma “rede de salvamento”. Mas também a patrocinar o estudo e o ensino da religião judaica, sendo célebre a sua valiosa intervenção na edição de traduções da Bíblia e de outras obras de liturgia para português e espanhol, como forma de ajudar os cristãos-novos recém-retornados ao judaísmo.
Através da biografia de Grácia Nasi, Esther Mucznik traça o mapa da vida e do destino de milhares de homens e mulheres da Península Ibérica que foram proibidos de comungar a sua fé e obrigados a converter-se em cristãos-novos, simulando acreditar numa religião que nunca sentiram como sua. Sofreram perseguições, ataques, até a morte. Mas muitos mantiveram-se fiéis e clandestinamente praticaram o judaísmo, como podiam e sabiam.
Destaque ainda para o glossário e a cronologia, que permitem uma visão global de uma época e de uma parte menos conhecida da História.
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Esther Mucznik
Grácia Nasi – a judia portuguesa do século XVI que desafio o seu próprio destino
A Esfera dos Livros, 23€