Graça Pina de Morais ou a solidão do ser humano

CRÓNICA
| Susana Cristina Sousa

Como referiu Pessoa, embora em relação à Coca-Cola: primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Foi o que aconteceu comigo e Graça Pina de Morais. O pobre de Santiago, que calcorreou estradas, serras e veredas a vida inteira, foi quem me apresentou a autora. A primeira impressão revestiu-se de um quê de estranheza. Ambivalente, dividia-me entre aproximação/afastamento. Foi necessário ler o conto mais uma vez, relê-lo novamente e… eis que surge “um pressentimento de beleza, a agitar a terra adormecida.”
Devorei o livro, todos os contos. Não sei se foi ele que se entranhou em mim ou se fui eu quem se viu (e a toda a humanidade) entranhada e cravada em cada caracter de todas as páginas.
Ambientes citadinos, com cafés, livrarias e néons, repletos de melancolia, snobismo, bajulação e egotismo, onde “parece que o amor é o único fim da vida da maioria das mulheres (…)”. Onde, usando a expressão de outro grande, o poetinha, a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida. O ciúme, a possessividade e, ainda assim, o amor.
“– Porque gostas de mim? – perguntara-lhe eu, um dia.” “(..) Cristina, tão próxima do grande mistério da vida!”, responde: “– Não sei, o amor existe dentro de mim, calhou dar-to a ti e enquanto o quiseres é teu; tenho uma alma fiel.”
Há também ecos afastados da urbe. Caseiros simples divididos entre uma serventia, geracional herdada, às suas santaspatroas e a “Nosso Senhor Jesus Cristo” e o instinto animal de sobrevivência. Mulheres, novas e velhas, grotescas e delicadas, loucas e sãs, a quem a “possibilidade de dormir ao abrigo do tempo era (…) uma felicidade inesperada que bastava bem para (…) encher a alma.”
A velha grande e cega, de quem a morte se esquecera, cai assassinada e já com saudades da vida. Tudo por causa duma nota e um arraial… E Ermelinda anda “no carrocel, sempre à roda, sempre à roda, ao som da música. Não pedia absolutamente mais nada à vida, e como tinha de obedecer aos seus desejos de ocasião, não hesitou um segundo. (…) como era um ser ávido e insaciável, em voltas e em voltas, gastou até ao fim a nota da Margaridona.”
Percebo, agora, a ambivalência inicial, pois esta reunião completa dos contos, edição premente, é curiosamente (ou não!) tão actual.
Não há pessoas boas, nem pessoas más. Existe simplesmente a condição de se ser humano. Há a Terra, a Casa, a Vida. Carros no asfalto e trânsito. Trabalho árduo, alegria e solidão. Há perda e morte. “(…) indignação violenta” que irrompe. Há a angústia, mas também a luz da mocidade num corpo velho e gasto e há o Sublime…
o círculo vicioso, a fé e jogos de água. Os incomunicáveis, amigos de infância. Desencontro e serenidade. Há a mulher do chapéu de palha na sala de aula, na luz do fim. Cristina. O pobre de Santiago, “mendigo proprietário”.
«Bem-aventurados os simples…» vs os semideuses: Nós –  ávidos e insaciáveis… “em voltas e em voltas”, “exactamente como as crianças, [acreditando] nas [nossas] mentiras.”
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Graça Pina de Morais
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