Gonçalo Rocha Gonçalves: “A polícia e a cultura policial mudaram muito consoante o regime político no poder”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Fardados de Azul: Polícia e Cultura Policial em Portugal (c. 1860-1939)»?
R-Este trabalho tem origem em pesquisas académicas, mas tentei escrever um livro que não fosse a simples reprodução de uma tese de doutoramento, o objetivo foi escrever uma obra abrangente sobre história da polícia que, sem perder o rigor de uma pesquisa científica, tentasse alcançar um público mais alargado de profissionais da área e interessados em história contemporânea de Portugal. O livro parte também de uma permissa que é para mim central na forma como devemos olhar a polícia e a prática policial: não é possível fazer uma história da polícia sem olhar para os indivíduos que, sobretudo a partir de um processo de profissionalização que começa no final do século XIX, trabalharam e fizeram carreira nas instituições policiais. Daí o título, Fardados de Azul. Temas como condições de trabalho, identidade profissional e espírito de corpo, mas também como as práticas policiais foram-se alterando nas ruas ocupam um espaço central em todo o trabalho.
2-Do seu ponto de vista, quais as dimensões determinantes da polícia e da cultura policial em Portugal no período que aborda (1860-1939)?
R-Poderia escolher várias dimensões, mas vou indicar uma que me parece mais relevante se considerarmos que o livro aborda um período relativamente extenso da história contemporânea de Portugal. A polícia e a cultura policial mudaram muito consoante o regime político no poder. Entre uma cultural liberal no final do século XIX, que, apesar de não conferir grande protagonismo profissional aos polícias, não deixou de tentar moldar a polícia de acordo com um cultura política que, pelo menos em teoria, tinha em mente direitos e liberdades individuais; uma Primeira República que nunca conseguiu estabelecer uma polícia a que pudesse chamar de “sua”; e um Estado Novo que eleva o estatuto político da polícia, introduzindo nela um principio autoritário que se refletiu na esquadra e na rua – a polícia e a cultura policial tiveram transformações profundas ao longo de todo o período analisado. Pode parecer “natural” que uma mudança de regime político conduza a transformações profundas na polícia, mas como exemplos estrangeiros ou de outros períodos na História de Portugal têm demostrado, não devemos assumir isso como algo automático. Apesar de algumas continuidades – é possível encontrar indivíduos que fizeram carreira na polícia em lugares relevantes ao longo dos três regimes – uma dimensão determinante da polícia é que cada período político marcou muito, à sua maneira, a cultura policial do país.
3-Vista agora do século XXI, de que forma a presença da Polícia no imaginário dos portugueses se transformou (ou não): sobretudo que traços permanecem desde o período anterior à Segunda Grande Guerra Mundial?
R-Em primeiro lugar, é importante notar que, ao contrário do que acontece em outros países, o polícia não ocupa um lugar proeminente no imaginário público dos portugueses. Isso deve-se, na minha opinião, à transversalidade do mito do “povo de brandos costumes”. Salazar imaginava um Portugal composto de pequenas comunidades rurais capazes de resolverem por si mesmas os seus conflitos. Afonso Costa exprimiu a ideia de que, fora de Lisboa, Porto e Coimbra, o país não necessitava de grandes forças policiais. À direita e à esquerda, o polícia português não ocupou o lugar que o Bobby Londrino, o Gendarme Francês ou o Guardia Civil Espanhol têm nos seus respetivos países.
Mas uma imagem persistente, que me parece ainda existir em alguns setores da sociedade portuguesa, é a de um polícia com origens rurais, à procura de um emprego seguro, e que é pouco culto e inteligente. No final do século XIX é possível encontrar caricaturas que ridicularizavam os erros ortográficos e a caligrafia dos polícias. No final do século XX, o personagem Guarda Serôdio, da série Os Amigos de Gaspar, traduz de forma paradigmática esta imagem duradoura em Portugal.
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Gonçalo Rocha Gonçalves
Fardados de Azul
Tinta-da-China 16,90€