Gabriel García Márquez: inédito e póstumo

CRÓNICA
| Célia Gomes

«Vemo-nos em agosto». Mas podia ser em setembro, ou outubro, ou dezembro. Mas era agosto, «o mês dos calores e dos aguaceiros loucos», o mês escolhido por Magdalena para viajar até à ilha. Viagem que, inicialmente, empreendia para   visitar a campa da mãe, enfeitando-a com gladíolos vermelhos e que, posteriormente, se tornou o caminho da libertação. Talvez os «aguaceiros loucos» da ilha fossem aguaceiros da loucura que necessitava na sua vida.  Chamemos-lhe ()loucura, evasão, encontro ou aventura, tanto faz. E, pergunto, que seria da vida sem inconsequente loucura? Aventura, após «27 anos de casamento bem-avindo com um homem que amava e que a amava». Casamento este, repleto de música, com o marido, Domenico, músico que para além de dirigir uma orquestra, escrevia «um manual para uma maneira mais humana de ouvir música, e um coração diferente para a interpretar». Talvez demasiadas notas harmónicas, nesse «amor alegre em que até a loucura era admissível». Talvez uma vida demasiado afinada, a necessitar de um toque agudo de desafinação. E foi na ilha, longe de tudo e de todos, que encontrou a desafinação nos efeitos afrodisíacos do gin misturado com o som do «Claire de Lune» de Debussy, «o mundo mudou a partir do primeiro gole. Sentiu-se aventureira, alegre, capaz de tudo e embelezada pela mistura sagrada da música com o gin». E foi esse cocktail de sons e sabor que a desarmou, tornando-a capaz de seduzir, capaz de conduzir, capaz de saciar e de ser saciada. Tudo numa noite, nessa únicanoite iluminada pelo  brilho do seu querer. Aventura testemunhada apenas pelo «Drácula» de Bram Stoker que repousava na mesa de cabeceira. () Com o amanhecer, o ponto de viragem, «a consciência brutal de que tinha dormido pela primeira vez na vida com um homem que não era o seu». Sempre a tramada  culpa a estragar tudo! E a partir desse 16 de agosto, «nunca mais voltaria a ser a mesma», ao regressar a casa parecia-lhe que tudo mudara, mas «as mudanças não eram do mundo, e sim dela própria, que andara sempre pela vida sem a ver». () Acrescento, talvez sem a viver. Mudanças que afetaram o relacionamento conjugal, fingido e indiferente, lembrando José Carlos Barros, Ana Magdalena ou Domenico poderiam dizer um ao outro «de repente o nosso amor é isto que se vê». E decorrido quase um ano, começaram as «borboletas a esvoaçar-lhe no peito» e a necessidade de regresso à ilha, à perdição, à busca de paixão e nova aventura. Também ela, à semelhança de Plath, era «habitada por um grito: noite após noite bate as asas procurando com as garras algo para amar». E, na ilha, as mesmas rotinas, os gladíolos vermelhos, as garças azuis no lago, a campa da mãe e as confissões, o quarto do hotel, a música, o gin, a busca e a volúpia. Ano após ano, com mais ou menos sucesso. E, inesperadamente, no cemitério, uma revelação. Costuma dizer-se que «tudo se herda» (e mais não digo). Todos os sentimentos e emoções, todas as paisagens, toda a envolvência erótica, escritos e descritos com majestosidade, delicadeza e elegância pelo grande Gabo, com deleite. E presentes estão, também, os temas sempre latentes nas suas obras: o ser humano, a solidão, as desventuras no amor e a própria vida, que, como defendia o próprio, «é a melhor coisa que já se inventou».  Aceno com a cabeça concordando com García Márquez, enquanto recordo versos de um poema de Kahlo «tu mereces um amor que leve as mentiras e traga as fantasias, café e poesia». Magdalena merecia e todos merecemos.
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Gabriel Garcia Márquez
Vemo-nos em Agosto
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