Erlin Kagge: A experiência do silêncio
CRÓNICA
|agostinho sousa
Tenho andado a ponderar qual a melhor abordagem para a crónica sobre este livro que se lê num par (absorvente) de horas mas deixa a leitura a pairar (no pensamento). Da sua conclusão ficaram inúmeros lapisados das passagens mais marcantes. Muitas poderiam figurar como introdução ou breve nota que anteceda qualquer outro texto. A fartura e a qualidade desse material, que vai muito além da temática do «silêncio», permitiriam entrecruzar essas passagens para a abordagem que andava a ponderar. Mas, por um mero e real acaso, não foi essa a opção.
Hoje, num passeio matinal junto ao areal, enquanto a cidade ia abrindo os olhos e eu escutava o som do mar, matutava sobre o valor do «silêncio» e a sua importância nesta «era do ruído», como sugere o título. Matutava nessa feliz oferenda de um amigo, recebida no natal e verificava que, curiosamente, já tinham passado três meses sem nada ter escrito sobre essa leitura. Matutava nas diferenças entre esse mundo do fim de 2021 e o que vivemos hoje. Matutava sobre a sua leitura imediata, mal o recebi, após ter verificado na contracapa que o autor, um ilustre norueguês meu desconhecido, “foi a primeira pessoa a alcançar os «três polos»: Norte, Sul e o pico do Evereste. Passou por experiências inesquecíveis e de grande risco, enfrentando a solidão física e experimentando o isolamento real nessas paragens remotas e belíssimas (em 1993, passou 50 dias a caminhar sozinho, na Antártida).” E que termina com uma frase desse caminhante incansável que diz muito da abordagem do livro: “Não se trata de virar as costas ao que nos rodeia, mas de ver o mundo mais claramente.”
De volta ao meu trajeto matinal ao longo da esplanada, quase deserta, revejo um casal. Cruzamo-nos enquanto iam em silêncio. Ele vestido com um fato de treino azul e amarelo, e ela num traje idêntico mas branco. Ambos são altos, jovens e elegantes, de pele demasiado clara. Dela sobressaem uns olhos azuis penetrantes e um pescoço esguio. Faz-me lembrar os rostos pintados por Modigliani. Mais uns passos, faço inversão de marcha e ao aproximar-me das suas costas escuto um diálogo numa língua que julgo ser eslava: russa ou ucraniana?
O meu silêncio altera-se.
Ultrapasso-os, desvio o olhar e, ao fundo, há um grupo de jovens, quase adultos, equipados a rigor a caminho do mar. Levam cada um a sua prancha de surf.
O meu silêncio volta a alterar-se ao imaginá-los vestidos de camuflado e a segurarem cada um uma arma automática (entre escombros).
Faço uma pausa, penso na guerra na Ucrânia e pergunto-me, sem resposta, porque será que existem seres (tão des)humanos capazes de dilacerarem o silêncio a que cada um deveria ter direito.
Chego a casa, pego no livro e na primeira página em branco está manuscrita, a lápis, uma frase de “O Senhor de Herbais” de Maria Gabriela Llansol com que quebro o meu silêncio: “E assim acabou o dia serenamente, um daqueles muitos dias que trazem à memória qualquer lugar, e fazem perdurar o silêncio.”
«O silêncio na era do ruído» é um recomendável livro e dele uma certeza está garantida: será relido – várias vezes!
E será emprestado para outros contemplarem outros tantos «silêncios». (Espinho, 26/03/2022)
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Erlin Kagge
Silêncio na era do ruído
Quetzal