Enquanto houver homens há história
Quando o muro de Berlim caiu (e é curioso que, normalmente, se não diga: “foi derrubado”), houve de tudo um pouco. Lamentos de desilusão de quantos sempre acreditaram piamente na experiência ensaiada na ex-União Soviética, e as inevitáveis justificações, quase sempre de ordem prática, porque aparentemente a ideologia saía ilesa do percalço de 1989.
Do outro lado desta barricada, que afinal parecia resumir-se a um muro, rejubilaram todos os que, odiando o comunismo (a maioria nem sabia o que era o marxismo, e assim continuará…), viam na dissolução da barreira a oportunidade de expandir de novo o modo de vida ocidental, conquistar povos que supostamente suspiravam por outra organização social, pelas liberdades políticas, pela riqueza caída do colo dos capitalistas.
Um filósofo e economista americano, descendente de japoneses migrados, de seu nome Francis Fukuyama, leu nos astros do firmamento político o fim da história, numa obra que se tornou uma espécie de bíblia para quantos suspiravam pelo fim do sovietismo. Este autor entendeu que a democracia liberal tinha o mundo nas mãos, numa tendência iniciada com o fim da Segunda Guerra Mundial e culminada em Berlim.
Ou seja, a globalização levaria com ela, a todo o mundo, o modelo do liberalismo, mesmo que não assumidamente neo. E os povos render-se-iam aos evidentes benefícios inerentes à chegada de um modelo previamente expandido e exaltado em filmes, jornais e, por fim, na Internet.
Como se sabe, a coisa não correu exactamente assim. Robert Kagan, historiador americano reconhecidamente conservador, regista a este propósito duas suposições resultantes do “determinismo económico e ideológico dos primeiros anos do pós-Guerra Fria”: primeiro, a crença de que a história se move numa única direcção, nascida no Iluminismo e renovada com a queda do comunismo; e uma receita de paciência e contenção, leia-se de não enfrentamento das autocracias sobreviventes, enredando-as na economia global, apoiando “o estado de direito e a criação de instituições estatais mais fortes”. “As inelutáveis forças do progresso humano” fariam o resto, na “sua magia”.
Uma nova ordem mundial se anunciava, uma espécie de amanhãs que cantam agora ao ritmo do “rock” do comércio, sob a batuta dos interesses ocidentais, embora com o argumento de que todos lucrariam. “Os países que fizessem negócios uns com os outros estariam menos disponíveis para lutar entre si”, profetizava-se. E citava-se Montesquieu para confirmar a previsão.
“Os seus cidadãos procurariam a prosperidade e o conforto e abandonariam as paixões atávicas, as lutas por preito e glória, os ódios tribais que produziram os conflitos ao longo da história”, era um dos eixos desta congeminação. A história desta teoria não só tinha acabado, como o mundo se tinha tornado plano, quiçá chato: essa coisa da luta de classes, por exemplo, teria sido uma fantasia de um Marx azedo. Thomas Friedman publicaria mesmo uma obra reconhecendo a nova situação.
Contradições económicas e geográficas de sempre, nunca resolvidas, estavam envolvidas pelo papel reluzente da industrialização e do comércio mundiais, que, para cúmulo, libertavam os ocidentais da opressão do trabalho, submetiam os do lado de lá a uma aceleração ao encontro do novo mundo, e ainda os integrava no modo de vida que lhes era levado e vendido. E o “choque das civilizações”, tão diligentemente construído por outro americano, Samuel P. Huntingtin, ele também um conservador, como seria resolvido?
É claro que a construção deste novo modelo internacional não poderia ser linear, mesmo no tal mundo aplanado e achatado. “Nos anos 1990, o mundo democrático, liderado pelos Estados Unidos, derrubou governos no Panamá e no Haiti e fez por duas vezes a guerra contra a Sérvia de Slobodan Milosevic”, escreve Kagan. Mais, regista muito naturalmente que organizações não governamentais “fortemente financiadas por governos ocidentais, treinaram partidos da oposição e apoiaram reformas eleitorais na Europa Central e de Leste e na Ásia Central”. A nova ordem comercial não bastava, portanto.
Esforços, afinal, talvez não inteiramente recompensados. Como se sabe, as tendências favoráveis ao modelo político-ideológico ocidental, perspectivado a partir de 1989 nos países do ex-pacto de Varsóvia, têm sofrido altos e baixos, mesmo alguns reveses. Os primeiros dirigentes russos deram lugar a outros e as tensões ressurgiram, com Moscovo a reposicionar-se no xadrez europeu e mundial.
“Os governantes chineses não se esqueceram de que se o mundo democrático tivesse prosseguido em 1989, eles estariam agora fora do poder, possivelmente presos ou pior”, entende Kagan. Mas não estão e “a Rússia e a China estão a promover uma nova ordem internacional que conceda alto valor à soberania nacional que possa proteger governos autocráticos da ingerência estrangeira”. O reconhecimento das democracias e das autocracias está aqui, bem entendido, atribuído ao mundo ocidental, particularmente aos Estados Unidos. Foi o que fez Bush, por exemplo.
Kagan conclui assim: “A grande falácia da nossa era tem sido a crença de que uma ordem internacional liberal repousa no triunfo das ideias e no desenrolar do progresso humano”. Claro, com uma ajudinha, como as tais ingerências que reconhecidamente são prática recorrente das nossas democracias liberais. Excepto nas autocracias de conveniência, como a chinesa…
De qualquer modo, para Kagan valeu a pena o caminho feito, embora “a reemergência de grandes potências autocráticas, juntamente com as forças reaccionárias do radicalismo islâmico, enfraqueceu essa ordem [liberal] e ameaça enfraquecê-la ainda mais nos anos e décadas que estão para vir”. O que seria se não tivesse valido a pena? Bem, aparentemente, os conservadores ficavam sem motivos de preocupação. Ou seja, o mundo ficava realmente plano, chato, sem sal. Era o que decorria do tal “fim da história” traçado por Fukuyama.
Um livro, embora publicado em 2009, com todo o interesse de actualidade. Muito bem servido por uma tradução de Oscar Mascarenhas, séria, cuidada e a facilitar a vida ao leitor, de que são exemplo as notas introduzidas para esclarecimento de dados referidos pelo autor, como nomes, menos óbvios.
Do outro lado desta barricada, que afinal parecia resumir-se a um muro, rejubilaram todos os que, odiando o comunismo (a maioria nem sabia o que era o marxismo, e assim continuará…), viam na dissolução da barreira a oportunidade de expandir de novo o modo de vida ocidental, conquistar povos que supostamente suspiravam por outra organização social, pelas liberdades políticas, pela riqueza caída do colo dos capitalistas.
Um filósofo e economista americano, descendente de japoneses migrados, de seu nome Francis Fukuyama, leu nos astros do firmamento político o fim da história, numa obra que se tornou uma espécie de bíblia para quantos suspiravam pelo fim do sovietismo. Este autor entendeu que a democracia liberal tinha o mundo nas mãos, numa tendência iniciada com o fim da Segunda Guerra Mundial e culminada em Berlim.
Ou seja, a globalização levaria com ela, a todo o mundo, o modelo do liberalismo, mesmo que não assumidamente neo. E os povos render-se-iam aos evidentes benefícios inerentes à chegada de um modelo previamente expandido e exaltado em filmes, jornais e, por fim, na Internet.
Como se sabe, a coisa não correu exactamente assim. Robert Kagan, historiador americano reconhecidamente conservador, regista a este propósito duas suposições resultantes do “determinismo económico e ideológico dos primeiros anos do pós-Guerra Fria”: primeiro, a crença de que a história se move numa única direcção, nascida no Iluminismo e renovada com a queda do comunismo; e uma receita de paciência e contenção, leia-se de não enfrentamento das autocracias sobreviventes, enredando-as na economia global, apoiando “o estado de direito e a criação de instituições estatais mais fortes”. “As inelutáveis forças do progresso humano” fariam o resto, na “sua magia”.
Uma nova ordem mundial se anunciava, uma espécie de amanhãs que cantam agora ao ritmo do “rock” do comércio, sob a batuta dos interesses ocidentais, embora com o argumento de que todos lucrariam. “Os países que fizessem negócios uns com os outros estariam menos disponíveis para lutar entre si”, profetizava-se. E citava-se Montesquieu para confirmar a previsão.
“Os seus cidadãos procurariam a prosperidade e o conforto e abandonariam as paixões atávicas, as lutas por preito e glória, os ódios tribais que produziram os conflitos ao longo da história”, era um dos eixos desta congeminação. A história desta teoria não só tinha acabado, como o mundo se tinha tornado plano, quiçá chato: essa coisa da luta de classes, por exemplo, teria sido uma fantasia de um Marx azedo. Thomas Friedman publicaria mesmo uma obra reconhecendo a nova situação.
Contradições económicas e geográficas de sempre, nunca resolvidas, estavam envolvidas pelo papel reluzente da industrialização e do comércio mundiais, que, para cúmulo, libertavam os ocidentais da opressão do trabalho, submetiam os do lado de lá a uma aceleração ao encontro do novo mundo, e ainda os integrava no modo de vida que lhes era levado e vendido. E o “choque das civilizações”, tão diligentemente construído por outro americano, Samuel P. Huntingtin, ele também um conservador, como seria resolvido?
É claro que a construção deste novo modelo internacional não poderia ser linear, mesmo no tal mundo aplanado e achatado. “Nos anos 1990, o mundo democrático, liderado pelos Estados Unidos, derrubou governos no Panamá e no Haiti e fez por duas vezes a guerra contra a Sérvia de Slobodan Milosevic”, escreve Kagan. Mais, regista muito naturalmente que organizações não governamentais “fortemente financiadas por governos ocidentais, treinaram partidos da oposição e apoiaram reformas eleitorais na Europa Central e de Leste e na Ásia Central”. A nova ordem comercial não bastava, portanto.
Esforços, afinal, talvez não inteiramente recompensados. Como se sabe, as tendências favoráveis ao modelo político-ideológico ocidental, perspectivado a partir de 1989 nos países do ex-pacto de Varsóvia, têm sofrido altos e baixos, mesmo alguns reveses. Os primeiros dirigentes russos deram lugar a outros e as tensões ressurgiram, com Moscovo a reposicionar-se no xadrez europeu e mundial.
“Os governantes chineses não se esqueceram de que se o mundo democrático tivesse prosseguido em 1989, eles estariam agora fora do poder, possivelmente presos ou pior”, entende Kagan. Mas não estão e “a Rússia e a China estão a promover uma nova ordem internacional que conceda alto valor à soberania nacional que possa proteger governos autocráticos da ingerência estrangeira”. O reconhecimento das democracias e das autocracias está aqui, bem entendido, atribuído ao mundo ocidental, particularmente aos Estados Unidos. Foi o que fez Bush, por exemplo.
Kagan conclui assim: “A grande falácia da nossa era tem sido a crença de que uma ordem internacional liberal repousa no triunfo das ideias e no desenrolar do progresso humano”. Claro, com uma ajudinha, como as tais ingerências que reconhecidamente são prática recorrente das nossas democracias liberais. Excepto nas autocracias de conveniência, como a chinesa…
De qualquer modo, para Kagan valeu a pena o caminho feito, embora “a reemergência de grandes potências autocráticas, juntamente com as forças reaccionárias do radicalismo islâmico, enfraqueceu essa ordem [liberal] e ameaça enfraquecê-la ainda mais nos anos e décadas que estão para vir”. O que seria se não tivesse valido a pena? Bem, aparentemente, os conservadores ficavam sem motivos de preocupação. Ou seja, o mundo ficava realmente plano, chato, sem sal. Era o que decorria do tal “fim da história” traçado por Fukuyama.
Um livro, embora publicado em 2009, com todo o interesse de actualidade. Muito bem servido por uma tradução de Oscar Mascarenhas, séria, cuidada e a facilitar a vida ao leitor, de que são exemplo as notas introduzidas para esclarecimento de dados referidos pelo autor, como nomes, menos óbvios.
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Robert Kagan
O regresso da História e o fim dos sonhos
Casa das Letras, 12,11€