Eduarda Neves | O Auto-Retrato. Fotografia e Subjectivação
1- De que trata este seu livro “O Auto-Retrato. Fotografia e Subjectivação”?
R- Como refiro no livro, não pretendi enquadrar o tema em
causa no signo do narcisismo ou da falta (onde habitualmente ele é encontrado)
nem apresentar uma revisão historiográfica ou crítica sobre o auto-retrato e a
imagem fotográfica. Assim, tentei mostrar que no século XIX, através do auto-retrato, a imagem fotográfica
expande algumas das suas vocações: (I) a vontade de saber (reforçando o
projecto positivista e cumprindo o mito do realismo óptico ou, até mesmo, uma certa vocação
metafísica); (II) o potencial
arquivístico da época, assim dando continuidade ao dispositivo panóptico.
Auto-retrato e imagem fotográfica estão ao serviço dessa crença num saber
íntimo e privado que cada um supostamente esconde e que é preciso descobrir e
fazer revelar. Neste âmbito, o auto-retrato constitui uma tecnologia do eu e nele encontramos a estrutura da experiência
da subjectividade moderna que se filia no exame da consciência e na confissão.
Na linha da proposta de Michel Foucault, pensamos que, através do auto-retrato,
se procura uma suposta verdade de si, uma qualquer essência da identidade. É
esta função que a fotografia, graças à sua natureza indiciária, parece cumprir
melhor que a pintura. A fotografia encontra-se ao serviço dessa relação entre
conhecimento e verdade, poder e controlo. No entanto, se a partir da segunda
metade do século XX, o paradigma oitocentista e a procura de uma essência da
identidade já não constituem princípios orientadores, o regime
confessional não desaparece e torna-se
presente em diversos auto-retratos cujas iconografias dominantes (género, sexo, identidade, corpo, intimidade,
privado, auto-biografia, etc etc) se
tornam mercadoria. Estas figuras do sujeito
ocupam um lugar fundamental no domínio da economia política,
satisfazendo o próprio sistema que potencia a indústria da subjectividade.
Tornar tudo visível e, portanto, controlável, é obedecer ao quadro simbólico
que sustenta o capitalismo e organiza o mundo; a interioridade desinibida
torna-se o espaço de circulação do capital. Os mecanismos do inconsciente
óptico configuram as histórias individuais e, se quisermos, o inconsciente
histórico. A máquina é a própria realidade na sua produção de desejo e de
socius. O auto-retrato e a imagem fotográfica ocupam no campo da arte,
sobretudo a partir da década de sessenta, um espaço fundamental estruturando a
retórica mistificada da identidade. Tudo deve ser visto, tudo deve ser
mostrado, tudo deve ser consumido. Enquanto colónias do capital não só se
inscrevem na designada economia das identidades como se subordinam à crença de
que somos livres quanto mais discursos produzimos sobre nós próprios, sobretudo
a partir do lugar do sexo. Seria importante fazer uma história política e económica
do auto-retrato.
R- Como refiro no livro, não pretendi enquadrar o tema em
causa no signo do narcisismo ou da falta (onde habitualmente ele é encontrado)
nem apresentar uma revisão historiográfica ou crítica sobre o auto-retrato e a
imagem fotográfica. Assim, tentei mostrar que no século XIX, através do auto-retrato, a imagem fotográfica
expande algumas das suas vocações: (I) a vontade de saber (reforçando o
projecto positivista e cumprindo o mito do realismo óptico ou, até mesmo, uma certa vocação
metafísica); (II) o potencial
arquivístico da época, assim dando continuidade ao dispositivo panóptico.
Auto-retrato e imagem fotográfica estão ao serviço dessa crença num saber
íntimo e privado que cada um supostamente esconde e que é preciso descobrir e
fazer revelar. Neste âmbito, o auto-retrato constitui uma tecnologia do eu e nele encontramos a estrutura da experiência
da subjectividade moderna que se filia no exame da consciência e na confissão.
Na linha da proposta de Michel Foucault, pensamos que, através do auto-retrato,
se procura uma suposta verdade de si, uma qualquer essência da identidade. É
esta função que a fotografia, graças à sua natureza indiciária, parece cumprir
melhor que a pintura. A fotografia encontra-se ao serviço dessa relação entre
conhecimento e verdade, poder e controlo. No entanto, se a partir da segunda
metade do século XX, o paradigma oitocentista e a procura de uma essência da
identidade já não constituem princípios orientadores, o regime
confessional não desaparece e torna-se
presente em diversos auto-retratos cujas iconografias dominantes (género, sexo, identidade, corpo, intimidade,
privado, auto-biografia, etc etc) se
tornam mercadoria. Estas figuras do sujeito
ocupam um lugar fundamental no domínio da economia política,
satisfazendo o próprio sistema que potencia a indústria da subjectividade.
Tornar tudo visível e, portanto, controlável, é obedecer ao quadro simbólico
que sustenta o capitalismo e organiza o mundo; a interioridade desinibida
torna-se o espaço de circulação do capital. Os mecanismos do inconsciente
óptico configuram as histórias individuais e, se quisermos, o inconsciente
histórico. A máquina é a própria realidade na sua produção de desejo e de
socius. O auto-retrato e a imagem fotográfica ocupam no campo da arte,
sobretudo a partir da década de sessenta, um espaço fundamental estruturando a
retórica mistificada da identidade. Tudo deve ser visto, tudo deve ser
mostrado, tudo deve ser consumido. Enquanto colónias do capital não só se
inscrevem na designada economia das identidades como se subordinam à crença de
que somos livres quanto mais discursos produzimos sobre nós próprios, sobretudo
a partir do lugar do sexo. Seria importante fazer uma história política e económica
do auto-retrato.
2- De forma resumida, qual a principal ideia que espera conseguir transmitir
aos seus leitores?
R- Além do que já referi, e à semelhança de muitos outros autores, penso que as
questões presentes nos programas da maior parte dos fotógrafos da tradição
modernista (sobretudo nos que reivindicam um lugar para a fotografia no campo
da arte) não são as mesmas que encontramos nos programas dos artistas
plásticos, sobretudo nas primeiras décadas do século XX. Como disse Mel
Bochner, tentar produzir uma teoria sobre fotografia talvez seja um equívoco.
Por outro lado, foi a fotografia (com os problemas de legitimação artística que
historicamente lhe estão associados) que contribuiu para que múltiplas práticas
artísticas contemporâneas [sobretudo a partir de finais dos anos cinquenta do
século passado] se repensassem a si
mesmas. Potenciam mesmo, como é mencionado no livro, a célebre questão
Benjaminiana: a de saber até que ponto o aparecimento da fotografia afecta e
transforma os conceitos que herdamos de arte e obra de arte. Neste âmbito, a
imagem fotográfica assume-se como ferramenta a partir da qual vários artistas,
sobretudo no território das artes plásticas, desenvolve a sua produção. Tal
acontecerá, aliás, com o filme e o vídeo. Talvez a singularidade da fotografia
resida num outro lugar, já anunciado por Roland Barthes. Esta seria uma outra
tarefa.
3-Fora da arte, o auto-retrato tem sido abundantemente usado por muitos: que
significado atribui aos milhões de selfies que são tiradas (e expostas, por
exemplo, nas redes sociais)?
R- Como não existe A identidade, nunca saberemos quem somos, apenas o que vamos
sendo. Nenhum auto-retrato é possível. Talvez a selfie seja uma das máscaras para os nossos guetos.
__________
Eduarda Neves
O Auto-Retrato. Fotografia e Subjectivação
Palimpsesto 15,90€
sendo. Nenhum auto-retrato é possível. Talvez a selfie seja uma das máscaras para os nossos guetos.
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Eduarda Neves
O Auto-Retrato. Fotografia e Subjectivação
Palimpsesto 15,90€