Eduarda Chiote | Não É Preciso Gritar


1-O que representa, no contexto da sua obra o livro “Não é Preciso Gritar”? R- Significa o desejo de transmitir a experiência de uma realidade de vida, de linguagem e de afectos – extremamente honesta, frontal e criativa. Todo o livro verdadeiro se condensa numa frase. Recordo uma: de Boudha: a vida não é um problema a resolver mas uma realidade a experimentar. Significa, pois, um assumir extremo. Essa áspera e belíssima experiência de vida que lhe refiro nua. Desprotegida. Tanto assim que no início ele (o livro) tinha por título “De um total Impudor”. Um Impudor total. Significa o assumir de uma liberdade que as múltiplas personagens ousam enfrentar (e desafiar). Que traduz por vezes a perversa e sórdida fascinação de uma feminilidade e masculinidade abismadas – na esteia da minha poesia onde se defende que só se é livre quando absolutamente irresponsável – e, consequentemente, o que há de mais sombrio e menos controlado no sexo, no crime, na matéria desejante e imperdoável da paixão da morte renovada: um facto. Mas também na vida que se oferta iluminada pela sábia ignorância da folha que se desprende e finalmente cai. Pela grande sabedoria de “um desaprender a desesperar”. De tudo. O homem, o mundo, o caos. Mudou de título para “Não é Preciso Gritar” por sugestão do Armando Silva Carvalho, que me interditou o óbvio. Estou-lhe agradecida, por ter entendido a intensidade e densidade de construção; da funcionalidade literária e a coragem das personagens; por me propor apresentá-lo com a modéstia que traduz o eu tê-lo feito o melhor que soube e pude. Quero desde já deixar registado que escrevi todos os textos com o mesmo carinho e o desejo obsceno daquele anjo de Rilke em que o belo é o começo do terrível entre o que dura e passa. E dizer que se não abdiquei uma vez mais da violência do humor mesmo no amor (que parece caracterizar-me), foi por respeito pelo nosso egoísmo, sofrimento e loucura e fragilidade, tal como quero deixar também registado que nunca exagerei no quanto “a vida é trágica e doce, eterna e fugitiva”: e que essa é uma verdadeira verdade. Sinto mesmo que, acalmado o tumulto e o caos até ao esquecimento de mundo, o que fica do livro é a sua pureza – a sua verdade. E a verdade, no dizer de Sponville, a verdade ou eterna fugacidade, não é um espectáculo – faz menos barulho que este. Daí o não ser “Não ser preciso Gritar”. Quando falo da estrutura do livro, tenho a certeza de que tentei escrevê-lo em três plataformas diferentes: a da visibilidade do autor que tende a transformar o narrador em narrativa e narrado; a do leitor (e do que nele há de autor) em diálogo com as várias literaturas em causa; e, muito especialmente a do que eu entendo ser literatura e acaba por seduzi-lo e experiência-lo. Na tradução excelente de Guilherme IX de Aquitânia, do Prof. Dr. Arnaldo Saraiva (a quem agradeço as revisões rigorosas, amizade e permanente encorajamento) pode ler-se que no poeta o humor pode sobrepor-se ao amor. Que a arte de poetar, nele, estava acima da arte de amar. Subscrevo inteiramente esta posição. Sinto o potencial libertador da criatividade do humor numa escrita que se defronta e confronta com o literário – o torna dialogante, falante, familiar. Daí as incursões, no texto, de “visitas relembradas”, como no caso de Drusilla: de Edward Gorey: autor que me terá inspirado o carácter sinóptico; sugerido temáticas e porventura, assim o espero, “situações insólitas que fluem e multiplicam estratégias evasivas, “aparições e confabulações impossibilitando “qualquer moralista corolário”: a ele devo a clareza “imperturbada” do facto.
2-Qual a ideia que esteve na origem do livro? R-Deixe-me sentir o pensar a precariedade do sopro, da respiração, da fala. Lacan tem razão: a vida é uma respiração que fala. Uma vez detive-me sobre um seu pensamento. Deslumbrante! Só a morte deseja: não é por ser instintual que passa a ser natural. Quando alguém morre dizemos é natural, não dizemos é instintual. Que ideia! Dizer que a morte não é natural causa-nos estranheza. Estranheidade. Dizer que é instintual coloca-nos uma questão. Voltemos ao início: “a vida não é um problema e a morte é o que encontra a solução em si mesmo”, diz André Comte. A natureza: o natural! Não é por ser artificial que se deixa de ser natural. O homem é anti-natural por excelência; perdeu a sua natureza: sabemos. Por isso comunica inverdades; fabrica palavras. Ah! o sem sentido da realidade da sua perfeição, como nos escapa! O vento fala? É a fala de Deus? O vento é o poeta em deus? “Não existe, o poeta, só vento.” – Em “Branca Morte” há um poeta menino que se lamenta: Mãe, a tua linguagem mata-me. E depois afoga-se num charco. – Ah!, a linguagem! O pensamento ouvido e presente! Como dar testemunho humano a um tão alto grau de liberdade? Então veio-me a ideia de escrever um livro desconfortável, certamente, mas muito límpido, implacável, sobre as crianças que se suicidam antes de ter nascido. Recriei-as e indestrutíveis porque através de equilíbrios efémeros, comovedoras máscaras que retirei da mais profunda aflição da pele. Mas para isso tive de percorrer a paz em todas as direcções – para, dessa sensatez, fazer jorrar um crime. Um crime, como os tantos deste livro – já vê, amigo. Somos todos desconhecedores obscuros em busca da limpidez. Alguém escreveu de mim que ando em busca do desespero levado às profundezas. Isso é perder o medo, não é mesmo? Li igualmente que perdi o respeito à morte. Alguns livros senão todos celebram-na no assombro e aterradora ignorância de vida! Somos anjos caminhando sobre o lodo; entende? Um lapso entre o ataque e a defesa. Foi assim em todos quantos escrevi e para grande espanto meu, são os muito jovens os que, salvo uma ou outra excepção, mais gostam deles. Bom. A ideia de escrever para os adultos que a vida infantiliza e as crianças que a morte amadurece, permitia-me retomar os limites do corpo, o seu desencontro com a paixão, mesmo a do corpo que nos abandona; penso, porém, que não foi por aí, por essa via, que eu fui. Deixe ver se consigo ser precisa. Escrevi que há encenações que se fazem contra a peça e editores e mesmo autores que se fazem contra os livros, e então, um dia lembrei-me de ter lido em Sena Lino que a minha poesia ia contra a corrente de muita da poesia mais recente em termos de inscrição no feminino e numa poderosa inversão que tornava este mais forte e o masculino lugar de prazer, o que revelava o eros feminino como o princípio criador civilizacional, e fez-me pensar sobre e como materializar essa potencialidade deixando-a acontecer em contos ou novelas que desencadeassem a lucidez da força geradora desse impacto. A dos afectos e dedicação à escrita está condensada em dúzia e meia de amigos a quem ousei dedicá-los; quase todos escritores. E nos diálogos com a experiência literária. Acha que lhe respondi? Eu gostaria de poder acreditá-lo.
3-Pergunta, curiosa e jubilosamente falando no futuro: o que está a escrever neste momento? R- Pois. Ainda bem que conjuga este momento presente como sendo um tempo futuro! “O que tinha de acontecer já aconteceu”… dito e redito. Não dominamos nada. Ora. Na badana que pediram para a capa afirmei que escrever era um vício. Ora. Deixe-me, para aligeirar, contar-lhe um pequeno episódio que convida a ilustrá-lo. Numa, ocasião, uns conhecidos gentis, convidaram-me para passar com eles uns dias. Acedi. Como se empenharam em garantir-me a privacidade – escrevo sempre que leio e leio a qualquer momento da noite ou do dia – e tinham uma biblioteca muito vasta, passei o tempo a ler, a tomar notas, interrompendo só para tomar uns cafés, fumar uns cigarros ou beber um ou outro wisque. As nossas conversas eram banalíssimas e as minhas intervenções mais que medíocres. Eu não tinha cultura geral nenhuma, sabia menos que um miúdo. A dada altura, a senhora, voltando-se para mim, disse, admiradíssima: – Mas você é uma pessoa de hábitos. Mal podíamos imagina-lo! E eu retorqui: – Não tenho hábitos. Tenho vícios. E adoro os vícios. – Sou, pois, confessamente uma drogada da leitura e da escrita: escrevo a ler, leio a escrever: sou, por solidão, defesa, natureza… um bruto, grosseiro e extremamente delicado animal de escrita. Escrevo muito e pouco ou quase nada publico. Mas sou um animal epistolar – repito. Escrevo aos amigos, sobre os amigos, pelos amigos e este livro é a prova cabal disso. Neste momento ocupo-me de um (de poesia) que penso ser o último. Chama-se “Órgãos Epistolares”. Nasceu de uma experiência dolorosa pela qual acabo de passar. Nele. Pois. Materialismo estrito. No momento em que respondo às suas belas perguntas, tenho ao lado uma crónica de Arnaldo Saraiva sobre o poeta de “Marília de Dirceu”, tido “como o mais lido e editado livro de poemas em português depois dos Lusíadas” e permito-me dizer-lhe que gostaria de o escrever generosamente, com “Um coração maior que o mundo”. Se bem que, e a Arnaldo cito, «o cerebral poeta João Cabral gostasse de repetir que “o coração é só um músculo”». O cronista interroga a dúvida e deduz: – Só um músculo? Talvez; mas que músculo! Capaz de mover o mundo! O mundo, o amor do mundo, o amor do amor pelo mundo. Acho que é sobre isso que estou a escrever neste momento: ele está tão carente, tão necessitado!__________Eduarda ChioteNão é Preciso GritarCampo das Letras, 14€