Dora Nunes Gago: “Criou metáforas através das quais nos contou o mundo, a História, a luta pela liberdade”
1-No ano do centenário de José Saramago, qual o principal legado do escritor?
R-O legado de Saramago é enorme, a marca que deixou na nossa literatura é notável. Acima de tudo, Saramago criou metáforas através das quais nos contou o mundo, a História, a luta pela liberdade, dando voz aos oprimidos, aos que se procuram erguer do chão, àqueles que integram o povo anónimo. Isso evidencia-se, por exemplo, no memorial do Convento, onde é representado o sacrifício da colectividade humana, subjugada pela extravagante vontade de um rei. Neste caso, as personagens mais relevantes (Blimunda, Baltasar…) são oriundas do povo, são aquelas que a História escamoteia que se erguem nas páginas de Saramago, numa escrita que desafia as convenções históricas, literárias, religiosas, sociais.
2-Qual é o seu livro preferido escrito pelo nosso Nobel?
R- Gosto muito especialmente de O Ano da Morte de Ricardo Reis e de o Ensaio sobre a Cegueira.
3-Razões dessa escolha?
R-Acho fascinante o modo como é recriado Ricardo Reis, os diálogos com o fantasma de Pessoa, a solidão que deixa transparecer, a reescrita subtil da História, a representação da ditadura e das ditaduras cujas garras emergem pela Europa, o tom irónico. Também a intertextualidade assume uma presença extraordinária, através das numerosas vozes convocadas, desde Cesário Verde, a Camões, para além de muitas outras. Penso que é uma obra de uma riqueza extraordinária, na qual descobrimos sempre novos vectores, novos caminhos de análise. Por seu turno, em Ensaio sobre a Cegueira deparamo-nos com metáforas também poderosíssimas, com a imagem de um mundo que avança para o abismo da desumanização, da intolerância, da indiferença, da hipocrisia. Infelizmente, é uma obra cada vez mais actual. Basta olharmos ao nosso redor : pandemia, guerra na Europa, todos os danos colaterais advindos daí, a alienação, o egoísmo, egocentrismo…
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Dora Nunes Gago, Escritora